Caso do Nescau quente.

Mesmo não cruzando a Ipiranga e a avenida São João, alguma coisa acontecia no meu coração naqueles anos 80. Era um misto de novas construções, um apelo extraordinário para o trabalho, acreditar na possibilidade de edificar a felicidade com competência e envolvimento, o acordar bem cedo, atravessar uma grande parte da nossa São Paulo para chegar a unidades diferentes do pré-vestibular. Novos investimentos, crenças que se definiam. Hora de definições como pessoa e como mulher.

Com menos de um ano de casada, o meu pai sofreu um derrame. Honestamente eu não sabia o que estava acontecendo. Aquele mal súbito, o falar embaralhado, o não poder caminhar. Tudo em poucas horas. O hospital. Mais uma vez, o hospital.

Nunca tive tão de perto a certeza da perda. Ela viria. Tudo uma questão de tempo. Pela primeira vez fui comprar fraldas para uma pessoa adulta. Calada, paguei a conta e aquele foi o pior dinheiro do mundo que tive que gastar.

Mas a fila anda. Com o tempo, os meus pais se mudaram para o norte do Paraná, onde os irmãos da minha mãe estariam a amparar e a tentar dar alguma vida digna para todos eles.

Fiquei em São Paulo compreendendo todo o processo dessa separação. Eu estava lá, junto deles, quando entraram no carro. O meu irmão deu a partida, acelerou e nunca mais voltaram. Não chorei dessa vez. Eu havia feito as minhas escolhas.

Nas idas e vindas, a partir da casa da vila Sônia, eu tomava o ônibus. Ministrava aulas numa unidade em Pinheiros, outra em Santana, na Mooca, na rua Augusta, no Belém, enfim... Vida fácil a de professora! Correr mundo para tentar levar algum conhecimento a alguém. Mas ainda havia respeito e não deboche. Eu acreditava no meu trabalho. Amava profundamente o meu ofício.

Uma vez por mês eu ia visitar os meus pais. Tomava o ônibus à noite, depois das aulas de sexta-feira. Chegava lá dopada de sono e voltava ainda pior. Da rodoviária eu já tomava o metrô e ia direto para a unidade Santana. Sobrevivi a tudo.

Somente às terças-feiras eu tinha, na parte da tarde, um tempo livre. Aproveitava para ir ao Ipiranga, na interessantíssima rua Silva Bueno, visitar a minha tia, irmã do meu pai. Paraplégica, eu nem podia pensar em convidá-la para ir até a minha casa. Realmente, ela nunca foi ao meu espaço, mesmo depois que me mudei para a Aclimação. Mas eu ia até lá e levava ora um pão italiano, comprado especialmente no Bixiga, meu Bixiga, ora levava um bolo. Cheguei a levar pão de queijo, enfim, eu jamais soube o que era chegar com as mãos vazias.

Mas um dia... ah esse dia! O frio cortante me deixava com a pele do rosto crispada, os sapatos mostrando o abraço da chuva e eu tremia e nem podia esconder.

Sempre com sorriso bom para mim, a tia, que também era madrinha, pediu ao marido para me fazer um Nescau “pelandinho” para que eu pudesse aguentar aquele tranco.

Nunca mais bebi um Nescau daquele jeito. Copo transbordante, literalmente pelando, com o carinho de um tio brincalhão e muito amoroso, eu senti que tudo valia a pena. Todo o esforço para arrumar tempo para dar a atenção para uma tia que sofreu, um dia, uma cirurgia de resultado desastroso. O meu pai ficava, à distância, reconfortado com a atenção que eu estaria dispensando à sua única irmã, daria notícias, estabeleceria um elo entre os dois. Cedo eu compreendi que, para se ter e manter uma família, é preciso raça, propósito, uma determinação única, uma disposição que minimiza o impacto de um frio tão intenso no meio de uma tarde que convidava a um breve sono reparador. Minimizaria também o esforço de uma viagem todo final de mês para ver os meus pais em situação de dúvida quanto ao futuro.

Aquele Nescau tão quente naquela terça-feira gelada me fez compreender o quanto é bom viver com compromisso e abençoar a herança bendita dos antepassados, que ensinaram o respeito ao próximo, a valorização da família e a aceitar para sempre que Il lavoro non fa paura.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 19/09/2013
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