NÃO SE ESQUEÇA DE VIVER

Meu personagem de hoje não é jovem nem velho, deve estar na faixa dos trinta e poucos. É alto, magro, usa cabelo grande – às vezes solto, às vezes preso num rabo de cavalo, mas quase sempre desgrenhado, estilo rebelde. Na opinião das pessoas que o conhecem de vista ou de um ou outro contato mais ou menos superficial, é um tipo estranho, sério, nem bonito nem feio, reservado demais para o gosto delas e, por isso, não merecedor de sua atenção, de sua companhia, de sua conversa fiada e de suas esfuziantes manifestações de amizade – enfim, um tipo perfeito para ser ignorado e desprezado por todos.

Na empresa onde trabalha é um funcionário dedicado e cordial, mas sua relação com os colegas não é muito diferente da que mantém com a maioria das pessoas fora do ambiente de trabalho. No seu trato com eles, normalmente é frio e distante, exceto com aqueles que se apartam um pouco da manada, que de vez em quando se permitem escapar do padrão geral de comportamentos, atitudes e estratégias que, com suas regras estritas, mais parece um livro sagrado, uma bíblia das corporações, sempre com o foco na produtividade, no cumprimento das metas, no aprimoramento profissional, no sucesso – algo que, para ele, não faz muito sentido.

Ele mora sozinho num barracão de três cômodos, bem perto de um lote que comprou há dois anos com o dinheiro de um acerto. No lote ele está construindo uma casa, do jeito que ele sempre sonhou: com quintal, varanda, dois quartos, escritório e uma cozinha bem grande e arejada.

O dinheiro acabou, mas a casa já está de pé, com a laje batida e o piso pago. Ele está lá agora, apreciando a obra. Falta muito ainda para terminar, ele sabe disso, mas está satisfeito com o que conseguiu. E se não estivesse só com o dinheiro da comida e do aluguel no bolso, até sair o próximo pagamento, talvez comprasse uma garrafa de vinho francês e a tomasse ali, no escuro, sozinho, olhando as estrelas.

Por volta de dez da noite, depois de trancar com cadeado e corrente o portão de ferro que protege a construção, ele volta para o barracão e liga a televisão. Pega uma maçã na geladeira, tira os sapatos e se estica no tapete, relaxado e contente.

Dois anos depois, a casa continua inacabada, mas habitável: o piso foi assentado, o telhado construído, janelas e portas instaladas, água e eletricidade ligadas. Ele não paga mais aluguel. E a mudança veio em boa hora, pois a empresa em que trabalhava quebrou, e ele foi demitido. Para ele foi como receber uma carta de alforria, uma liberdade que ele nunca teve coragem de se dar e que agora estava ali, diante dele, abrindo-lhe um leque de possibilidades, inclusive a de fazer da sua vida o que ele realmente quer, de verdade.

Está agora sozinho na sala, rodeado de livros, ouvindo rádio e tomando café. Tem dinheiro para se manter por mais ou menos um ano sem trabalhar. É o tempo que ele precisa para separar o joio do trigo e fazer suas escolhas, colocar os prós e os contras na balança e decidir que rumo dar à sua vida. Uma coisa ele já decidiu: vai priorizar a vida (a paixão, o prazer de viver), não o que muitos chamam de vida, mas que não passa de sobrevivência: trabalhar, trabalhar, trabalhar, para ter direito a pequenos momentos de uma felicidade que, para ele, não é a felicidade verdadeira (que está dentro de nós), mas uma felicidade artificial, enlatada, que só pode ser atingida quando se tem dinheiro suficiente para comprá-la.

Para ele nós não passamos de meros joguetes, peças de um sistema movido pelo dinheiro, em que o padrão de felicidade muda na medida em que o jogo avança e ganhamos mais dinheiro: de repente eu não sou mais feliz com um carro só, tenho que ter dois, três, e ainda uma moto Harley-Davidson; não quero mais ter uma casa de três quartos e duas vagas na garagem, tem que ser um apartamento de cobertura de cinco quartos e três vagas, localizado em bairro nobre; não aceito mais que meus filhos estudem numa escola particular de classe média, tem que ser num colégio de elite tipo A, que cobra uma fortuna de mensalidade; minha filha de dez anos não está mais feliz com a perspectiva de ir para a Disney, seu sonho agora é dar uma volta ao mundo em oitenta dias... E de repente eu morro... E me esqueci de viver.

Quando eu criei esse personagem, sem saber direito o que ia acontecer com ele, eu lhe disse: “Aconteça o que acontecer, não se esqueça de viver”.

Ele não vai se esquecer.

Agora são duas da madrugada. O rádio toca uma música antiga de João Mineiro e Marciano. Ele se sente feliz. O futuro incerto não o perturba, muito pelo contrário, traz-lhe uma paz que ele nunca sentiu antes, uma sensação de liberdade, de ser. “Que coisa boa, meu Deus!”, ele diz, e vai à cozinha pegar mais uma xícara de café.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 20/09/2013
Código do texto: T4489934
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