Do dito e do não dito

Final da palestra. Ela estava logo ali, perto.

Tomou fôlego.

Lá estava ela, em pé, cercada de amigas, sorrindo com toda leveza, beleza e tranquilidade que faziam dela aquela figura tão simples, bela e distante.

(Como estava distante...)

Não sabia o que dizer. Havia ensaiado de todas as formas, mas a fuga ao roteiro era algo que lhe assustava e parecia iminente. Pensou sobre como começaria a conversa: “Oi”. “É... escuta, tem algo que queria te dizer, que não sai da minha mente...”. Não. Clichê demais. Precisava de algo melhor. Transmitir fielmente o que pensava.

(Qual o problema em ser clichê?)

Céus! Que abismo entre o pensamento e as palavras. Que caminho tortuoso e confuso era aquele que estas enfrentavam. Mas elas às vezes parecem ter vida. Saem da boca sem nem serem solicitadas, sem aval do pensamento. Saem e levam o corpo, fundindo-se; transformando-se em atitudes que não puderam ser refletidas, mas talvez apenas objetos de arrependimento em outro momento.

Óbvio.

É óbvio que algo precisa ser dito.

(Vamos. É um homem ou um rato?)

Ratos. Queijo. Fome.

Talvez fosse melhor ir comer algo.

Fome. Era preciso se alimentar.

Fome de sentir, de agir. Como?

Seu estômago revirava e trazia consigo o resto do corpo. Suas mãos já não estavam mais secas. Havia algo de estranho em seu peito. Era como se o coração fosse para frente e para os lados, num zigue-zague estranho que deve ter acompanhado tantos outros homens em outros tempos. “Quem nunca?”.

Tomou coragem. Decidiu ir lá, e foi. Puxou-a gentilmente pelo braço, perguntou se poderia conversar.

- Sim, podemos. Tudo bem contigo? Gostou da palestra?

(...)

- Oi? Tô perguntando se gostou da palestra.

Fez que sim com a cabeça. Balbuciou algumas palavras, “Olha...”, “É que...”, “Bom...”. Silêncio. Fugia dos olhos dela como o filho envergonhado foge da reprovação da mãe. Dentro do peito, em ritmo frenético, o coração parecia sabotar todo aquele plano.

- Gostei. Muito boa. Só queria saber se está tudo bem.

- Sim, tudo bem.

- Preciso ir, até mais.

Foi-se.

Ela, parada e tentando entender tudo aquilo que acontecera, sorriu de canto de boca, e ao mesmo tempo uma tristeza lhe caia, acompanhando o movimento dos seus ombros após o breve suspiro.

Sabia que havia algo mais a ser dito. Mas entendia bem a situação. Já passara por isso antes quando as palavras lhe faltaram. Sabia do abismo e do percurso difícil que nossos pensamentos fazem. Sabia de como eles poderiam se perder no meio do caminho. Perda de coerência, de unidade. Pensamentos soltos, fragmentados. Certezas e medos.

(Humano. Você não passa disso. Rato? Não. Humano).

Quantos livros não poderiam ter sido escritos com aquilo que nunca foi dito? Quantos pensamentos, por falta de tempo ou pela infelicidade da circunstância, não foram embora pelo vidro da janela? O que haverá no lixo dos poetas, dos romancistas? E se as cartas que serviram de modelo acabaram por expressar melhor aquilo que se sentia? O que havia nos rascunhos? Quantas histórias não foram e viraram apenas saudades, saudades daquilo que nunca existiu, como diria o poeta.

Quanta coisa habita no silêncio de um quarto, no olhar que atravessa a janela e mira aquela noite estranha, fria, que abriga as estrelas.

As estrelas estão distantes. Inatingíveis. Mas podem ser admiradas...

Latência. Potência. Vontade.

Prisão.

Batem à porta. Querem sair.

Algumas palavras jamais deveriam ter sido ditas. Certas atitudes jamais deveriam ter acompanhado-as nessa dança desconexa, confusa.

Mas foram.

Precisaram.