QUANDO A IGNORÂNCIA CONSOLA.
Esse fato ocorreu na década de 40 ao que me lembro,  ainda era uma criança. Não passava dos oito anos, se a memória já não está falhando ou claudicando.
Quando nossa família vinha do Interior do Estado hospedava-se na casa de parente não consangüíneo e havia o simpático Carlito,(descendente de italianos), o então “pater familiae”, sua mulher A.-com duas irmãs(ambas já trabalhavam fora)-  e três filhas menores.Isto na rua Rocha,cujo número confesso não mais me lembro, próximo à avenida Nove de Julho,perto de túnel recém inaugurado que ligava o centro de Sampa aos bairros.Ia até essa avenida a pé,sozinho, para ver o movimento de ida e volta de carros importados e ficava admirado ao ver ônibus norte-americanos atendendo regularmente a população, com tanta eficiência e dignidade.As portas dos coletivos abriam e fechavam sob pressão e o barulho era curioso.Não se viajava de pé! São Paulo era realmente chique. Orgulho de seus habitantes que para trabalhar ou lazer usavam roupas finas e bonitas. A grande cidade, confesso, me encantava. Para entrar em cinema era preciso paletó e gravata... coisas desse tipo.  Carlito que era executivo de uma empresa metalúrgica – tinha um padrão de vida razoável(classe média) – possuía em sua casa um novíssimo  aparelho de TV que só pegava uma emissora a TV Tupi.A única. Ficava  ,boquiaberto, horas e horas esperando algum programa em preto e branco onde aparecia um indiozinho com duas antenas na cabeça, em meio a “chuviscos” incalculáveis. Era uma novidade...para o País esse aparelhinho, com tela reduzida e imenso móvel. Poucos tinham esse privilégio.Era chique ter TV em casa!! Carlito possuía telefone também que para ligar da Capital para o Interior havia uma telefonista –dependendo do dia e da hora – uma ligação durava 2 ou 3 horas de espera.Depois, ela chamava e completava a ligação. Só assim falávamos,nos interurbanos!
Um dia no Interior por minha mãe soubemos que Carlito – embora nos seus trinta anos- havia falecido de enfarte na madrugada.... Tempos depois, ainda criança ouvi de A. que ao morrer Carlito verteu “lágrimas nos olhos”;a viúva entendia que o marido ao se despedir .na agonia,havia chorado ao se despedir. Como criança jamais esqueci esse fato e jamais entendia como administrar o fenômeno da morte. Criança é assim mesmo! A. que já trabalhava fora de casa também com suas irmãs sempre levou na memória de Carlito – gente boa – havia vertido “lágrimas” ao se despedir da generosa família...Assim contavam.
O tempo passou e a gente cresceu como todo mundo, regra geral entre os seres humanos e desumanos. Cheguei à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, na velha Arcada, quando deixamos o Interior eis que na cidade não haviam Faculdades e nenhuma perspectiva de vida e futuro...Coisas da época e da vida.Isto por volta já de 1959.
Foi exatamente no quarto ano da Faculdade de Direito, pela competência e responsabilidade de eminente mestre-professor catedrático J.B. de O. e Costa Junior, na cátedra de Medicina Legal, autor de notável obra “Lições de Medicina Legal”, da Companhia Editora Nacional, que vim a descobrir e desvendar o mistério de Carlito e a santa ignorância de A. (que também já não está entre nós)....daí a razão do título: “QUANDO A IGNORÂNCIA CONSOLA”...  O eminente e notável mestre em suas aulas (excepcionais) ensinava aos alunos o quanto muitos ignorávamos(inclusive eu)... e disse que quando a gente passa desta  para a outra ( não sei se para melhor, como dizem), os músculos relaxam e o que tem contido no organismo, nas glândulas e tudo o mais, sai sem controle e involuntariamente...  Os músculos e tudo o mais flexionam.As lágrimas às vezes são inevitáveis. Muitos anos se passaram para desvendar o passado... e a minha santa curiosidade. Entretanto, no caso específico, acho que mesmo com essa informação técnica e científica, do notável Costa Junior, A.-a inconsolável viúva- ( que Deus a tenha), pela alegria e felicidade na sua família , estava de plena razão: Carlito ao morrer, prematuramente,chorou na despedida dos seus entes amados e queridos.Tudo isso pode ser verdade...( o falecido deixou grandes lembranças,além de patrimônio=um carro inglês preto,marca,Prefect.- muitos desconhecem,até colecionadores...  mais a televisão preto e branca com o indiozinho que enchia o saco-horas e horas no ar e era da TV- Tupi). 
 Entre risos e lágrimas.... A ignorância às vezes consola e traz mesmo até a felicidade!!Um consolo...Melhor mesmo é a ignorância!!!
QUANDO A IGNORÂNCIA CONSOLA