DEMARRÉ DECI

DEMARRÉ DECI.

Minha mãe, mulher habituada ao trabalho desde que se conhecera por gente, como dizia ela, entendia que eu, quase uma mocinha, deveria trabalhar para valorizar a vida, e aprender a participar das necessidades da família.

Eu sou pobre, pobre, pobre,

Demarré, marré, marré.

Eu sou pobre, pobre, pobre,

Demarré Deci...

Determinada como era encaminhou-me a uma fábrica de roupas para bebês. Eu tinha apenas 11 anos de idade, recém-saída de colégio interno, Colégio Anexo à Santa Casa, no qual permaneci dos sete aos onze anos. No colégio, tínhamos duas horas diárias de aula de bordados entre a missa, a arrumação dos dormitórios, limpeza dos corredores, banheiros e salas de aula e, após o almoço, o curso primário ministrado por irmãs professoras. Por esse motivo, eu estava apta a trabalhar na fabriqueta e bordar as roupinhas de bebê. As roupinhas eram confeccionadas em seda branca, como se usava à época. As crianças portavam esses camisolões para o batizado, juntamente com uma camisa-pagã por baixo do camisolão e complementada pela toca. Todas as peças eram bordadas e entremeadas de rendas e fitas.

Que ofício dar a ela,

Demarré, marré, marré.

Que ofício dar a ela,

Demarré Deci...

Sentada em círculo com outras garotas bordadeiras na sala da senhora Ivone, passávamos o dia bordando e conversando. Nos era servido um lanche às 14h e às 17h saíamos para retornar no dia seguinte às 7h da manhã.

O ofício de bordadeira

Demarré, marré, marré.

O ofício de bordadeira

Demarré Deci...

Ficar sentada durante todo o tempo foi cruciante para os meus onze anos!

A cadeira parecia ter formigas a me morder o traseiro. Eu me levantava e sentava o todo para desespero da Senhora Ivone, dona da fabriqueta. Com esse temperamento alegre eu me encanto das colegas e o desespero da Senhora Ivone. Cantava e ria o tempo todo, contava causos e acontecimentos do colégio. Minha imaginação era fértil! Mas, depois do trabalho, eu caminhava apenas uma quadra e já me estava em casa.

Todos os dias na volta do trabalho eu encontrava um pequeno grupo de meninas brincando na calçada de casa. As brincadeiras rolavam até o chamado da mãe para o banho e o jantar. Brincavam de amarelinha, pega-pega, barra-manteiga, jogos de bola na parede e cantigas de roda. Vez ou outra, improvisávamos um teatro imitando cenas de filmes.

Eu passava ao largo de olho espichado na esperança de receber, a qualquer momento, um convite para fazer parte do grupo. Eram quatro meninas entre dez e doze anos. Precisei me insinuar a elas, devagarzinho, para ser aceita no grupo. Como eu havia a pouco tempo saído do colégio, as meninas não me conheciam direito.

Não sei dizer quanto tempo brinquei na calçada com essas meninas. O tempo não tinha uma medida exata; o de um dia era cumprido e custava a passar, o de um ano contava uma eternidade. O tempo do namorado aguardado e que demorava a chegar, da menstruação da qual só ouvíamos buchichos das mães e tias, um tempo que marcaria a linha divisória entre a boneca e o sutiã. Um tempo que marcaria as mãos dadas com o primeiro namorado na matinê do Cine Voga, e o primeiro beijo roubado no escurinho do cinema.

Mas o tempo passou. Passou com perfume de dama-da-noite, manacá, estórias fantásticas contadas pelos adultos à noite após o jantar, com gosto de pipoca salgadinha e da gemada com vinho no inverno.

Juntas, sentadas na soleira da porta de casa, sonhávamos: quando formos mais velhas, daqui a alguns anos, vamos..., ou, dizíamos com profunda e doce emoção, cheias de amor e esperança em nossos corações, vamos nos casar todas no mesmo dia e depois, quando nossos filhos forem nascendo, seremos comadres pra toda vida.

Era, mas não compreendíamos ainda, a manifestação da necessidade de complementação do ciclo da vida, a procura do par, da família a se manifestar em nós.

Certa tarde, porém, alguma regra do jogo da vida foi quebrada. Alguém entrou na roda e veio brincar conosco:

Quero uma de vossas filhas

Demarré, marré, marré.

Quero uma de vossas filhas

Demarré Deci..

Nessa roda fechamos aquele instante da vida em nossas mãos dadas. Sem compromisso com o futuro, nem saudade do passado. Ali, somente a expectativa e o medo doce de ser escolhida:

Escolhei a que quiseres

Escolhei a que quiseres

Demarré, marré, marré.

Demarré Deci..

Mas, quem entrou naquela roda não veio para brincar. Chegou sem ser convidada e não descobriu seu rosto, como a:

Senhora Dona Canja

Coberta de ouro e prata

Descubra vosso rosto

Queremos ver sua cara.

Ela de fato escolheu a que quis! Escolheu a mais doce e mais bonita de nós.

Sônia a primeira a ser escolhida, subiu com os anjos aos dez anos, vítima de pneumonia. Depois, as outras três, uma a uma, abatidas como bonecos de tiro ao alvo de uma barraca de quermesse. Duas delas, irmãs, suicidaram-se na adolescência e a quarta foi assassinada no altar da igreja onde estava se casando, por um ex-noivo transtornado pelo ciúme.

Nossos sonhos não passaram de sonhos. Perderam-se no tempo. Num tempo que hoje tem medida:

Descubra vosso rosto

Queremos ver sua cara.

Eu sou a única sobrevivente do grupo e continuo jogando, dentro das regras estabelecidas pelo destino, e cantando na roda...

Esturato
Enviado por Esturato em 06/10/2013
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