Tardes de chuva [2007]

Chuvas no meio da tarde não são muito comuns por aqui. Mas em outubro o tempo muda, em outubro tudo acontece. Eu sempre chegava do colégio e me atracava com os livros em cima da mesa, resolvendo tudo que era tarefa de casa. Matemática, Português, Estudos Sociais, Ciências, Técnicas Comerciais, Educação Religiosa e Educação Artística. Nem pensava duas vezes, sentava na mesa e devorava os livros e cadernos. Depois de tudo resolvido era a hora da televisão. Eu, como quase toda criança naquela idade, dava um trabalho danado pra tomar banho e enrolava minha avó o máximo que podia ou conseguia; ficava em frente a TV durante horas. Às vezes até jantava antes do banho, querendo ganhar um pouquinho mais de tempo. Mas não tinha escapatória.

Minha avó sempre foi gente finíssima demais, mas naquele tempo, ai de quem não fizesse as coisas do jeitinho que ela queria! Hoje não, eu já me tornei independente, deixei de preocupá-la com essas coisas corriqueiras e os outros netos só aparecem lá de vez em quando, em visitas rápidas, ela agora se preocupa mais com a saúde dela e do meu avô. 89 anos o velho. Saúde de ferro. Ele mesmo é que inventa doenças. Outra vez ele disse que estava com uma fraqueza nas pernas, que não se sustentava mais em pé, estava velho. A gente explicava pra ele.

- Vô, o senhor não tem nada!

- Ai meu filho, eu quero ir a um médico. Ele é que entende dessas coisas.

Depois de muita discussão levamos ele a um médico. Diagnótico: nada. No mesmo instante ficou curado do tal problema nas pernas.

Mas eu sabia que era outubro e não demoraria muito, as chuvas chegariam. E menino é um bicho sabido.

Naquela tarde assistia a aula normalmente, como todos os dias olhando pela janela. De repente o tempo fechou. A chuva veio com força total. Não é calculada a alegria que subitamente tomou conta da sala. Claro, parte dessa felicidade era pelo motivo da sala estar cheia de goteiras a ponto de não ter mais condições da professora continuar a aula. Mas a grande parcela se dava ao fato da chuva ser esperada o ano todo. Afinal, em pleno sertão cearense, chuva é benção. Obra divina com a intenção de salvar a lavoura, para os mais crédulos. Apenas diversão para os garotos.

Saímos todos correndo pela chuva, com as mochilas na cabeça, gritando feito loucos. Fui direto pra casa.

- Vó! Vó! Me dá meu calção de banho!

- Calma menino, tu vais pra onde?

- Pra igreja!

A igreja era o "point" da garotada nas tardes de chuva. Lá do alto de suas enormes paredes desciam calhas em formato de boca de jacaré. Canos de zinco longos, grossos que na ponta formavam uma boca, com dentes e tudo. Nunca entendi porque que a igreja tinha calhas assim. Hoje não tem mais. Como a queda d'água era alta e forte, a boca de jacaré proporcionava um banho gostoso, animado, um banho sem a obrigação de ser um banho; formavam várias cachoeiras caindo de cima da igreja, parecia mesmo algo divino. A criançada toda se fartava de água, enrugava a pele, os lábios roxos e os dentes trelando, mas num tinha jeito, nós só saíamos de lá, quando a chuva acabava. Algumas vezes entrava a noite na chuva e minha vó tinha que ir lá me buscar debaixo de um guarda-chuva.

Outubro deveria durar pra sempre. Porque quando novembro chegava a criançada voltava pra frente da TV e enrolava até o último minuto pra tomar banho de chuveiro.