O caso da pipoca

Eu tentava ver as luzes da cidade pela sacada do apartamento. Tentando me apoiar no parapeito da varanda, eu dava alguns pulinhos na esperança de conseguir enxergar, mas as luzes eram ainda muito distantes das minhas tão limitadas retinas.

Eu sonhava ver a magia das luzes de São Paulo à noite. Tinha alguma coisa de magia, de mistério, de monumental beleza ainda proibida para quem tentava dar os primeiros passos, com indecisões e medos.

Tempos instigantes aqueles. Da janela do apartamento do Cambuci eu começava a sonhar e a alimentar um desejo imenso de me tornar adulta. Sim, como adulta, eu poderia sair, passear, descobrir a geografia da cidade, novos rostos e retratos que me convidariam ao deleite de estar no mundo. Tempos depois, da janela do meu quarto, numa casa dos tempos dos operários do Cambuci, eu também olhava em direção ao Ipiranga. E imaginava os tempos do meu pai ali, as conversas, a vida se movimentando... para onde? Mas haveria movimento, alguma festa, conversas quentes e olhares interessados.

Os meus sonhos vagavam. Adoravam vagar pelos espaços das esperanças. Não era proibido. Eu não contava a ninguém. Os sonhos eram egoisticamente meus. Vontade de ter palavra, alguma noção de realidade, marcar presença em algum lugar. Eu teria que me tornar adulta e me sentir parte integrante de uma São Paulo frenética, e a minha alma assim se preparava para ser – insaciável na busca do conhecimento, do saber fazer alguma coisa, do poder amar todas as expressões da arte, desenhar um palco aberto para um mundo, tentando construir felicidade.

Muitos dos meus sonhos serenamente se aquietavam quando chegava alguém em casa. Importante era a chegada inesperada do “seu” Renato. Era um senhor com uma idade um pouco considerável – pelo menos para os meus olhos infantis. Ele trazia notícias frescas dos tios do interior do Paraná. De pronto, o dia se tornava iluminado com tantas novidades. O “seu”. Renato era o portador de alguma carta em tempos de correios difíceis. Junto da carta, sempre alguma lembrança, algum tanto de balas 7 Belo embrulhadas num papel de pão, um pacote grande com erva doce para as infinitas dores de estômago do meu pai... Certa feita, ganhei dois pares de meias, um em cada caixinha. Gostei tanto que demorei a usá-las. Numa tarde, o “seu” Renato chegou com um bom tanto de milho de pipoca numa caixa de papelão. Papelão meio escuro, com a cor da terra do Paraná. Milho comprado a granel de algum sitiante.

Na mesma noite, a minha avó foi fazer pipoca para nós. Os netos ao seu lado, defronte ao fogão, e ela ali, com a panela já gasta, preparando a nossa delícia. O especialíssimo de tudo, carregado de encantamento, era a fartura vista na hora que a tampa da panela levantava. Esse misto de riso e contentamento nos unia profundamente naquela hora.

Com um recipiente grande de plástico as mãos, nos sentávamos defronte à televisão para nos deleitar com aquele milho estourado e salgado pelas doces mãos da avó. A irmã pequena se sentava entre meu irmão e eu e, assistindo algum desenho, comíamos igualmente. Proposital e amorosamente deixávamos as pipocas maiores para a caçula. Coisa de exercício de fraternidade, só isso. Aliás, beijávamos muito a pequena e eu cuidei dela até o máximo que pude, levando-a à escola, carregando os seus livros, dando-lhe um beijo na cabecinha e ela entrava para o colégio, o nosso Colégio, para começar a, lentamente, se fazer como pessoa.

Mas quando vejo hoje os pacotes individual do milho de pipoca, sem magia e nem encanto, que a pessoa compra em qualquer lugar, coloca no microondas, não sente a emoção da espera pelo estouro e muito menos a alegria da partilha, sem avó com sorriso estampado mexendo a panela velha e sem escolher as maiores para a irmãzinha, sem a delícia de ter alguém a enviar o milho a granel de longe como lembrança e entendimento das vontades dos pequenos... eu só posso exclamar, como o saudoso Drummond – “Eta vida besta, meu Deus”.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 26/10/2013
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