Uma foto para o morto

02 de Novembro dia de finados. A cidade parada, um silencio diferente e um céu cianótico para completar a ilustração. Uma das certezas que temos na vida infelizmente ou felizmente é a morte, quem tem muito dinheiro morre e quem não tem também vai para a cova. Como aqueles que temem o fim e os que dizem não terem medo da hora marcada. Eu sempre fui um sujeito de dupla personalidade em relação à morte, o primeiro ponto é que tenho um medo inexplicável dos defuntos. Como? Já disse que não sei explicar. Se vão me tocar com suas partes gélidas ou falar coisas que não quero ouvir, ou ainda mostrar suas faces cadavéricas como nos filmes de terror, isso não se organiza na minha cabeça. O fato é que não gosto de velórios e quando sou obrigado a ir não faço questão de olhar para o rosto, pois as raras vezes que precisei fingir coragem a imagem fixou-se na minha cabeça me deixando muitas noites sem dormir.

O outro lado inexplicável é que o assunto me atrai, fotos, filmes, relatos de pessoas em fases terminais enfim, tudo que envolve este lado procuro saber um pouco mais. Mesmo sabendo que terríveis pesadelos estão sempre tirando meu sono. Uma experiência que guardo dramaticamente, ontem folheando uma velha agenda me veio a tona e quero dividir. Na época em que pintava telhas decorativas e murais pela cidade, conheci um cara que tinha a estampa dos revolucionários roqueiros do movimento de Woodstock, gostava de política da esquerda como eu, tocava guitarra e eu bateria e desenhava também, éramos quase irmãos ideologicamente, Só nos separava seu repudio pelo futebol e meu amor que sempre nutri pelo Cruzeiro Esporte Clube. Mas são detalhes, Naqueles tempos eu estava montando um álbum que intitulei “Ex-Terrestres” com fotos e relatos de pessoas de tinham morrido em diversas situações.

Gorá era o nome que todos conheciam este nosso amigo excêntrico, que ao ver meu álbum ficou louco com tanta coisa que eu vinha acumulado durante alguns anos, inclusive pessoas que ele conhecia. Entre uma arte e outra ele estava sempre trazendo uma foto para eu colar, sua namorada a Lisa Ruiva apesar de também curtir o Rock Roll não era favorável àquela coleção, dizendo que trazia fluidos negativos. Certa vez em um Festival de Heavy Metal que fomos convidados para decorar o espaço e como gorjeta abrir o espetáculo com uma banda que montamos para tocar cover do Judas Priest, na hora da confraternização ele com algumas vodkas misturadas na cabeça, retirara meu álbum que estava na sua mochila e entregara-me dizendo que na página tal não era para ser colada nenhuma foto, pois queria a sua cara estampada lá ao lado do ex-vocalista do AC/DC Bom Scot. Fervidos pelo álcool e cansaço nenhum de nós se manifestou negativamente, pois é frequente esta depressão em alguns artistas que não aceitam as coleiras do sistema.

Só no outro dia que fui abri aquela pagina, com uma dor de cabeça e uma ressaca moral intensa, por não saber como consegui ter chegado em casa. Gorá havia retirado à colagem daquela página e transferido para frente às figuras, para ficar ao lado do seu ídolo, com uma caneta nanquim fizera uma moldura para colocar a foto e seu nome estava em letras estilizadas e pontiagudas como se fosse o logotipo da banda Sepultura. Se agora eu estivesse escrevendo um roteiro, seguiria assim: Corta para: Interior/dia/casa do Gorá. “Sua mãe corre desesperada pela rua tentando chamar atenção das pessoas”. Da janela da cozinha se vê o corpo do filho com o rosto desfigurado balançando, preso por uma corda dependurada na Goiabeira”. Infelizmente foram estas as palavras de Lisa que havia dormido também de porre no quarto dele sem se dar conta que ele estava La fora. Dentro das suas coisas havia muitas fotos que cabiam perfeitamente naquele espaço riscado por ele. Mas preferi queimar o álbum.