Há um tempo

Chego em casa ensopado, aos tropeços, a chuva que me encharca parece apenas engrossar, olho meu carro na garagem, os amassados e marcas evidentes, e me amaldiçoo por tê-lo deixado lá, logo hoje em que a chuva decidiu torrenciar.

Encontro minhas chaves, água fria escorre pelos meus olhos, tomo o último gole da garrafa plástica e enquanto sinto a bebida barata me aquecer atiro o recipiente vazio no telhado do vizinho. Depois de um pouco de luta encaixo a chave na fechadura velha, tão logo entro e tranco a porta uma poça surge onde estou, afasto o cão que saltita alegre até mim e deixando minha trilha de água atrás de mim caminho casa dentro.

Mesmo sendo gravemente ignorado o canino ainda me segue, contente e serelepe, cambaleando tropeço num tapete e o animal incapaz de frear tromba contra minhas pernas e me esborracho no corredor sujo, xingo ele que se encolhe, libero uma torrente considerável de palavrões e esfrego um ombro dolorido, chamo o cão pelo nome, que ainda assustado, se arrasta em minha direção. Afago-lhe um pouco e ele torna a ter aquele ar retardado, levanto, atiro minhas roupas molhadas no chão do banheiro, ligo o aquecedor e o chuveiro, encosto a porta e vou até meu quarto.

Um prato com restos de alguma coisa e catchup já rançoso repousa sobre a cama desarrumada, uma garrafa ou outra vazia no chão, um par de latas de cerveja mais ou menos numa mesinha, uma caixa de pizza encostada na parede ao lado de um violão que nunca aprendi a tocar, o cachorro me olha estupidamente do vão da porta. Afasto as camisas penduradas em cabides num armário sem porta e tateio até encontrar uma garrafa fechada de um uísque de dez pratas.

Abro-a com os dentes e cuspo a tampinha de plástico no chão, engulo um bom tanto daquela porcaria, que segue goela abaixo parecendo ácido de bateria, um pouco do frio se vai, o peso em meu peito não, me encaro o espelho e rio como um imbecil daquilo que vejo. Os olhos fundos e mareados, sem foco, olheiras escuras repousam sob eles, os cabelos desgrenhados, o pesar na expressão não desaparece mesmo com o sorriso falso, deixo de olhar tão logo consigo.

Tusso uma tosse seca e ardida, tomo mais um gole e, zonzo, cambaleio até o banheiro, ignorando o quadrúpede em meu caminho. Assim que abro a porta um bafo quente atinge meu corpo gelado, dentro do banheiro o calor me deixa mais tonto, ligo um rádio velho e um rock qualquer preenche o silêncio desagradável. Tento entrar no Box fumegante e bato a cabeça nele.

-Caralho – rio outra vez como um demente.

Me abaixo e entro sob a água quente, sento desajeitadamente de pernas cruzadas e bebo um longo gole, a água me queima por fora, a bebida por dentro. Fecho os olhos e sinto os músculos relaxarem um pouco. Minha mente vagueia por onde não quero, trazendo apenas dor, a tensão deste cabo de guerra entre o inconsciente e o que quero parece suficiente para arrebentar meu cérebro. Felizmente aquele arremedo de uísque a alivia um pouco, me encosto nos azulejos da parede e aprecio seu frio em minhas costas.

Apago, não sei quanto tempo passa, a água ainda escorre e o vapor começa a sufocar, tento levantar e minhas pernas moles mal respondem, tomo mais um gole e tossindo e engasgando, deixando de lado a ânsia que cresce, acabo por conseguir me levantar. Desligo o chuveiro, apanho uma toalha pendurada no Box e enquanto me seco displicentemente lembro-me de quando tinha uma mulher que me acompanhava em longos e lascivos banhos. Lembro-me que quanto ela me deixou fiquei arrasado, que quando quis voltar pra mim a bebida chegou a parecer supérflua, que quase a mandei se foder num dia de torpor alcoólico, que quase chorei quando a beijei pela última vez. Penso que se houvesse algo vivo dentro de mim poderia até chorar.

Longe de estar seco desligo o aquecedor e abro a porta, o ar frio faz com que meus pelos se arrepiem, o cachorro em sua abominável alegria idiota me aguarda deitado novamente no vão da porta do meu quarto, e permanece lá quando passo por cima dele e ganho o quarto. A chuva cessa, uma goteira deixa um círculo molhado no lençol que cobre meu colchão rasgado, alheio a isto, levo mais uma vez a garrafa aos lábios e tomo outro delicioso gole do que parece soda cáustica. Ligo a TV e sento no colchão úmido.

Um desenho animado que deve ter sido feito para crianças com problemas mentais passa nela, o cão apoia a cabeça em minha coxa, com uma mão faço, sem perceber, carinho no animal que precisa realmente de um bom banho, com a outra mantenho segura a garrafa. Lembro que há um tempo havia um irmão que teria banhado o cão, ou pelo menos me perturbado até que eu o fizesse. Tiro a mão do cão, ignoro seus protestos e troco de canal até encontrar algo um pouco interessante e acabo assistindo um seriado qualquer, a garrafa já pela metade.

Um sol tímido arrisca uma aparição entre as nuvens acinzentadas, passo a mão sobre uma cicatriz asquerosa em meu pescoço, outra na barriga, uma terceira no rosto e outras que não alcanço nas costas. Largo a garrafa pelo tempo que leva para colocar uma bermuda surrada, saio do quarto descalço e de peito nu, vou até a garagem, com receio e um suspiro abro o carro e pego o controle do portão.

Aperto diversas vezes os botões da porra do aparelhinho e o portão teima em permanecer fechado, rosno e xingo, antigamente tinha uma mãe que observava da janela e ria daquilo, um riso tão maravilhoso que dissipava de pronto minha raiva. Hoje não há mais riso e minha irritação aumenta até que arremesso o aparelho inútil contra a parede,depois que ele se espatifa em pedaços ainda mais inúteis, sento num dos degraus molhados que levam ao jardim e continuo a beber.

Restam dois ou três goles daquele vira-tripa na garrafa, logo apenas um, lembro de um tempo atrás, e observando meu carro amassado, com as lanternas quebradas, choro copiosamente.

Pietro Tyszka
Enviado por Pietro Tyszka em 03/11/2013
Código do texto: T4554350
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