QUANDO O SILÊNCIO FAZ SENTIDO
 
Calçadão de Copacabana. Fim de tarde de domingo que, apesar do frio, convidava a um passeio pela orla. Quando passei por ele, estava imóvel e seu semblante demonstrava serenidade. Um pouco de tristeza, também. Tentei não esbarrar nas dezenas de crianças e adultos que o observavam. Alguns estavam em silêncio. Outros aplaudiam, ou, simplesmente, riam. 


A cada moeda que caía na caixa que estava no chão, à sua frente, o homem-estátua movia, quase mecanicamente, um braço, depois o outro, fazia uma rotação do pescoço e uma pequena vênia, agradecendo e voltando à habitual imobilidade. Eram movimentos repetidos, milimetricamente pensados. Sem sorrir, sem olhar diretamente para as pessoas, parecia uma máquina. Uma máquina triste. Mas, no fundo, eram movimentos delicados. Porém, quase ninguém parecia notar a delicadeza do “engraxate” de pele, cabelos e vestes douradas. O dia a dia frenético que a cidade impõe às pessoas, acaba por privá-las de observar algumas belezas que fazem bem aos olhos e certos silêncios que fazem bem à alma.

Caminhei cerca de quinhentos metros e senti que precisava voltar atrás para rever a estátua dourada. Estava escurecendo, talvez as crianças já tivessem ido embora e houvesse oportunidade de fazer uma foto do artista de triste semblante.
Havia mudado de posição mas mantinha-se imóvel sobre o banco de pedra, um dos poucos que existem ao longo do Calçadão. Era visível o cansaço que já se manifestava através do olhar e da pele dourada. Apenas quatro pessoas o observavam. Senti algumas moedas tilintarem e os movimentos mecânicos se repetiram: moveu um braço, depois o outro, fez uma rotação do pescoço, depois uma pequena vênia e voltou à posição habitual.

Aproximou-se uma menina que, ao vê-lo, começou a correr, soltando-se da mão de seu avô. Ria e pulava de alegria, uma satisfação que contagiou os presentes. Sentou-se no banco de pedra numa atitude, ora contemplativa, ora interrogativa. Com certeza, dentro da sua cabecinha de menina, várias perguntas surgiam: o que levaria alguém a manter-se assim, imóvel, durante várias horas? Quanto horas o homem-estátua conseguia permanecer assim?

De repente, ouviu-se um suave psssiuuu. A menina arregalou os olhos – e não foi a única – e levantou-se, voltando-se para o homem-estátua, como que desafiando-o a emitir outro psssiuuu. O artista aproximou a mão direita dos lábios e ofereceu, delicadamente, um beijo soprado à criança que correspondeu com uma declaração simbólica: as mãos postas em forma de coração. A menina exultava de alegria e chamava o avô para junto dela.

Foi a primeira vez que vi o homem-estátua sorrir e olhar diretamente para alguém. O avô retirou do bolso algumas moedas e entregou-as à neta, apontando a caixa que estava no chão. Depois de ter colocado as moedas no local indicado, estendeu  sua mãozinha e acenou, despedindo-se. Foi a vez do jovem artista pôr as mãos em forma de coração, que encostou ao peito e depois direcionou para a pequena. Ao mesmo tempo ouviu-se uma clara e deliciosa risada infantil. Pensei que quem assim faz soltar risadas a uma criança deveria sentir-se muito feliz.


Alguns minutos se passaram, enquanto observei, em silêncio, aquele jovem artista que passava horas rodeado de pessoas, porém, parecia sozinho, ausente, encerrado num mundo só seu, imune ao desconforto e ao cansaço.
Aproximei-me e perguntei-lhe - baixinho, não fossem minhas palavras interromper aquele silêncio e  aquela imobilidade que me pareciam infindáveis - se podia tirar uma foto. Olhou para mim e sorriu, um sorriso que me pareceu ter vindo do seu coração que senti que também era dourado. Tirei uma foto. E outra. E mais uma. Ele inclinou a cabeça agradecendo, quando eu é que deveria agradecer. Pude admirar  de perto os traços de sua beleza delicada e firme, iluminada por uma estranha mistura de tristeza e doçura.  
 
Foi então que o homem-estátua desceu do seu pedestal e sentou-se ao lado da estátua de Carlos Drummond de Andrade. Um poeta dourado ao lado de um poeta de bronze, pensei. O passado e o presente, ali, à minha frente. Eis que tirou do bolso um pedaço de papel amassado e começou a declamar: 


     "Falar é completamente fácil,
       quando se têm palavras em mente
       que expressem sua opinião.

       Difícil é expressar por gestos e atitudes
       o que realmente queremos dizer,
       o quanto queremos dizer,
       antes que a pessoa se vá...
"

O brilho no seu olhar enquanto recitava o poema de Drummond era contagiante. Um brilho que trouxe beleza e luz àquele fim de tarde de primavera.
Quando terminou apenas se ouviram os meus aplausos e era visível a emoção no seu olhar e nos seus lábios.
Olhei em volta e não havia mais ninguém por perto. Procurei na minha bolsa algum dinheiro e coloquei minha contribuição na caixinha. Ao levantar-me senti que ele tocou levemente no bolso do meu casaco, ao mesmo tempo que agradecia, da forma que lhe era habitual, silenciosamente. Sorri, pensando que há silêncios que fazem sentido e desejei-lhe boa noite. Caminhei alguns metros e, sorrindo, senti que tinha ganho o dia, quando retirei do bolso do casaco o pedaço de papel amassado que o homem dourado ali havia colocado momentos antes. E enquanto lia o poema de Drummond, o céu, que até então estava vestido de escuras nuvens, pareceu ganhar luz e cores:

    
"Falar é completamente fácil..."
 
Sinto um imenso respeito pelo trabalho destes artistas de rua que batalham diariamente, enfrentando sol e chuva, e que sempre colocam um sorriso no meu rosto. Por força do seu trabalho, ficam horas na mesma posição, sem falar, sem piscar os olhos, sem comer, sem beber, tornando-se verdadeiras estátuas vivas, disfarçando seu próprio eu, imóveis, sem demonstrar sentimentos, voltados a todo tipo de olhares. Não são artistas de rua, são artistas da vida. A sua arte é uma atitude de coragem e é bela, tão bela como a de um grande artista no centro dos mais famosos palcos. Mais do que os trocados que vão parar à caixinha, eles gostam de levar a arte a quem passa.
O meu agradecimento e meus aplausos a todos os artistas que dão vida, cor e luz às ruas do Rio de Janeiro, embelezando o dia das pessoas que passam demasiado apressadas.
 
Ana Flor do Lácio
Ana Flor do Lácio
Enviado por Ana Flor do Lácio em 06/11/2013
Reeditado em 16/11/2013
Código do texto: T4559916
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