Na feira de sexta

Com o rosto vincado pelo tempo e por dissabores sem conta, o homem , parado e com olhar vago, vendia pequenos pacotes de limão. Sobre o caixote pequeno de madeira um tanto gasta pelas idas e vidas, ele oferecia o seu produto. Enquanto isso, os passantes simplesmente passavam. Como a vida. Como o tempo, soberano de todas as emoções, frustrações e também encantos.

Anos antes, na mesma feira de sexta, lá na vila Sônia, um senhor com roupas infinitamente puídas que confidenciou que perdeu a sua única nota quando bateu um vento. Bem no momento em que ele preparava o troco para a venda do picolé. Foi desabafo necessário demais para aquela situação, pois ele nem me conhecia. Rosto cravado de rugas, cabelos ralos, tinha como companheiro o velho carrinho com pneus carecas que abrigavam os picolés de groselha, de limão,uva, abacaxi...

E eu caminho por entre as barracas. Observo atenta os detalhes, as palavras, as tentativas de venda. As bananas se exibem ainda em pequenos montes, separadas pelas “qualidades” como dizia a minha avó. As batatas ainda em sacas, de tamanhos variados, esperando a companhia dos temperos da banca de frente. Inúmeras peças de roupas penduradas em cabides impedem o contato imediato com o comerciante.

Resolvo parar na barraca do pastel. Escolho a barraca do japonês por motivos históricos. Não há mais tanto barulho naquela feira. Pessoas que vão e vêm são hoje aposentadas, donas de casa que viveram ou ainda vivem num mundo limitado pelos problemas cotidianos da família e com pouco ou nenhuma esperança de um dia virem a vibrar com alguma coisa.

Escolho me sentar no banquinho de plástico que se prontifica ao lado da barraca do pastel enquanto espero a fritura. Passo a me alimentar daquela delícia e percebo que essa parte de São Paulo definha implacavelmente. Carrinhos carregados de melancias, couves, cocos para se ralar em casa, laranjas já não me atropelam mais. Ninguém mais me pisa no pé no decorrer da jornada.

Com tristeza relembro os olhares nordestinos na esperança de venderem a pimenta moída, o pacotinho com algumas cabeças de alho, a japonesa vendendo o seu avental de plástico azul claro ao lado das barracas com calçados expostos sobre as suas próprias caixas.

Com um sentimento saudoso, me despeço de uma São Paulo menos ruidosa das buzinas desesperadas pela passagem. Me despeço da alegria contida naqueles carrinhos abarrotados das mexericas de maio.

O pequeno comerciante está indo embora definitivamente. Sem sossego, pensando onde ir, o que fazer, que mercado buscar. Levando com ele o retrato de um tempo em que era possível se contemplar mais, gastar um tempinho com uns dois dedos de prosa, trocar mercadorias no final de mais uma das tantas feiras que se espalhavam por essa megalópole. O pequeno comerciante se vai, levando junto as suas dúzias de ovos de galinha caipira, o pé de alface ainda maior, as doces jabuticabas que dariam uma ótima sobremesa, levando também as caixas com figos de Valinhos.

O gigantismo do mercado esmagou aquela melodiosa poesia das calçadas. Feira era certeza. De que, meu Deus? Ainda não sei. A impessoalidade dos hipermercados frustra. As filas longas e demoradas, as ofertas intermináveis de produtos oferecem os mesmos sabores e nem um pouco da alegria de alguma descoberta.

Precisa-se do encantamento do contato. Com urgência. Um sorriso largo sem malícia, o experimentar um pedaço da laranja descascada, da manga Haden, espada ou bourbom. Isso é vida também, que a pauliceia, no seu desvairio, está pegando a borracha e conseguindo apagar. Mas deixando vestígio, pois sempre, sempre há tempo para resistência.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 08/11/2013
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