Rotina

Encosto o carro a algumas quadras do trabalho, sinto uma leveza desagradável na cabeça, estendo a mão direita para girar a chave e desligar o automóvel e percebo que ela treme um tanto. Fecho a mão e os olhos por um instante e a tremedeira diminui, consigo desligar o motor e olho o relógio em meu pulso esquerdo, são 7:27 de uma segunda chuvosa.

Do outro lado da rua o boteco permanece de portas fechadas "Seu luís, seu Luís, tá na hora." penso ansioso, ergo o volume do rádio e uma propaganda insuportável ganha meus ouvidos, apoios as mãos e a cabeça no volante e suspiro longamente. Passam alguns minutos, a propaganda horrorosa cede lugar a uma música razoável, ouço uma porta de metal ser rolada, um pouco nervoso aguardo que o senhor de jaleco azul abra as três portas do seu bar; depois faço um esforço e aguardo mais um pouco antes de sair do carro. Afinal, quem quer parecer um bêbado desesperado?

Depois do que parece uma eternidade finalmente saio do carro, e com pernas que parecem chumbadas no chão atravesso a rua. Olho ao meu redor e vejo algumas pessoas rumando para o mesmo lugar que eu, como se fossem aqueles zumbis de filmes antigos, com a diferença de que os fictícios tenham mais vida no olhar do que estes que vão até o bar.

Galgo os dois degraus na entrada do boteco, as mãos nos bolsos da calça, tentando forçar uma expressão calma, como se não houvesse nada demais naquilo, como se fosse algo corriqueiro na vida de todos, e não uma necessidade minha. Num canto do balcão branco um aposentado de mau humor anota alguns números num bloquinho de papel pardo e, enquanto tenta ficar rico, toma uma cerveja e me deseja um bom dia azedo.

O dono do estabelecimento vai até a cozinha buscar um punhado de salgados, o cara que lhe entrega os pães chega apressado e me encara com superioridade, dá-me um bom dia carregado de escárnio, larga duas sacolas no balcão, grita para o botequeiro avisando que cobrará no dia seguinte. Aceno com a cabeça respondendo ao cumprimento do padeiro escroto e tento fazer com que meu pé pare de bater constantemente no chão, suspiro profundamente, meu peito dói, e me sento num banquinho de madeira.

Seu Luís volta da cozinha com uma travessa cheia de coxinhas, pastéis, linguiças, bolinhos de carne e uma empada, sorri para mim, o primeiro honesto do dia, aperta minha mão e pergunta como estou.

-Maravilha seu Luís, e o senhor?

-Sempre teimando, é o jeito.

Apenas sorrio, o primeiro do dia e ele continua:

-Tomar aquele golinho?

-É o jeito - ele ri.

-Pois é, eu já tomei o meu - lança-me uma piscadela conspiratória.

Ele vai até uma geladeira e tira uma garrafa de vodka, de plástico, apanha um copinho de vidro e começa a enchê-lo, neste meio tempo chega um homem de meia idade que não se digna a reconhecer minha presença, ainda que olhe para meu copinho com desdém antes de pedir um café.

Tomo o primeiro gole, sinto um leve arrepio percorrer meu corpo, um sorriso involuntário brota em meu rosto cansado, fecho os olhos por um delicioso momento, o sabor ardido em minha boca é inebriante. Com alívio evidente percebo que minhas mãos se acalmaram, bebo mais um golinho quando noto que alguém fala comigo:

-... final de semana?

- Desculpe - digo com ar embaraçado para o senhor que me encara com certa afeição.

-Como foi o final de semana?

-Porra, cansei mais do que se tivesse trabalhado uns 10 dias, e por aí?

-Foi bom - termina seu cafézinho - mas deixa eu ir que tô em cima do laço, bom dia.

-Dia - dou-lhe um tapinha no ombro e recebo outro em troca.

Vejo-o ir enquanto dou outra bebericada, me sinto relaxado. Um sem teto exalando um cheiro podre entra e pede para usar o banheiro, o dono torcendo o nariz diz que banheiro é só pra cliente.

-E eu vou cagar onde? - retruca o mendigo com voz engrolada e odor atroz.

- Sei lá, na puta que te pariu.

Resmungando incongruentemente vai-se o morador de rua. Novamente sou pego de surpresa.

-... é um saco viu?

-Foda - respondo sem pensar.

Um cuidador de carro para e compra uma garrafa de pinga de 1,50, o velho do jogo do bicho já saiu, o mendigo cagou na rua e passou xingando seu Luís, ficamos só eu e ele, confiro o horário são 7:41. Beberico outra vez, sobra um restinho do líquido transparente no copo, começo a fazer de conta que presto atenção na história que ele me conta, algo sobre seu irmão enquanto eles viviam no sertão.

Balanço a cabeça nos momentos certos, faço cara séria quando preciso, sorrio fora de hora e me desculpo. Quando ele termina são 7:52, e junto acaba-se minha bebida, sinto-me um pouco abatido, queria ficar lá até conseguir beber o suficiente para desabar num torpor embriagado; saber que não posso chega a ser doloroso. Com educação interrompo sua narrativa:

-Desculpa seu Luís, tá dando minha hora.

-Sem problemas.

Um breve hiato.

-Vê mais meia faz favor.

Ele serve uma metade que mais parece três quartos, agradeço e viro tudo num gole, coloco um par de notas amassadas e umas moedas no balcão, aperto sua mão e com mais três moedas peço um punhado de balas.

Volto ao carro, deixo uma bala de sabor forte derreter em minha boca e rumo ao local de trabalho, são 7:56, não muito contente calculo que ainda faltam quatro horas e quatro minutos para poder dar uma escapadela e tomar mais um trago.

Pietro Tyszka
Enviado por Pietro Tyszka em 08/11/2013
Código do texto: T4562089
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