LÁPIDE - hoje em dia ultimamente

Um amigo meu, um sátiro, tem a mania de brincar com a seguinte ideia: "o que escrever na lápide de fulano e beltrano?". É muito engraçado porque os textos variam segundo o humor e o contexto em que se deseja o fulano/beltrano morto: um político, um ditador, um terrorista... Para rir um pouco e deixar menos pesada a reflexão. Que existir é isso, um catálogo de efêmeras partidas.

Lembro disso porque ontem minha mãe perguntou se eu sabia onde ela poderia tirar uma fotografia 3X4 que ficasse boa. Ri da simplicidade dela, mas veja: ela queria uma foto em que ficasse bem porque era para colocar na sua lápide.

Senti inveja dela, pensei tanta coisa... "Volver" do Amodóvar, em Drumont, Cecília!! E ela, sem metafísica, soltou um viiiichii quando entendeu como as fotografias são feitas "hoje em dia ultimamente" com webcan, na hora em que se faz um documento.

E "como eu palmilhasse vagamente uma estrada de Minas, pedregosa, a máquina do mundo se entreabriu para quem de a romper já se esquivava..." e resolvi apenas postar esse comentário e o poema sublime de Cecília Meireles que, não fosse extenso para uma lápide, ficaria muito bem na minha.

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Pus o meu sonho num navio

Pus o meu sonho num navio

e o navio em cima do mar;

depois abri o mar com as mãos,

para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas

do azul das ondas entreabertas,

e a cor que escorre dos meus dedos

colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,

a noite se curva de frio;

debaixo da água vai morrendo

meu sonho dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,

para fazer com que o mar cresça,

e o meu navio chegue ao fundo

e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito:

praia lisa, águas ordenadas,

meus olhos secos como pedras

e as minhas duas mãos quebradas.

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 12/11/2013
Reeditado em 19/11/2014
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