Shakespeare and Company

Sem rumo definido, o jovem escritor caminhava sozinho pelas ruas do Quartier Latin, em Paris. Atravessou o Boulevard Saint-Germain, andou mais um pouco e parou em frente à igreja medieval de Saint-Séverin. Ali, enquanto observava as gárgulas que se projetavam de uma das laterais do prédio, ficou pensando no passado, no burburinho daquelas ruas movimentadas, repletas de comerciantes, prostitutas, estudantes, mendigos e padres nos séculos XIII e XIV, e sentiu-se pequeno, quase nada, diante da inexorabilidade do tempo.

Continuou caminhando, em passos lentos, e logo se viu na entrada de uma livraria: a 'Shakespeare and Company'. Entrou e se encantou. O prédio era muito antigo, tinha sido um monastério no século XVI. Quase em frente, grandiosa e imponente na sua indiferença de pedra, a Catedral de Notre-Dame.

“Mas que beleza de livraria!”, disse para si mesmo, encantado com o que via; e ao avançar um pouco mais, sentiu no ar uma energia diferente: era como um convite, uma acolhida das mais calorosas, cheia de amor e generosidade – como se a livraria estivesse viva e o abraçasse, sem querer nada em troca.

Tudo ali era em inglês, língua que aos poucos vinha tomando o lugar do francês como sua preferida (depois do português, é claro). Na língua de Shakespeare, lera muito Paul Auster e P. D. James. Encontrou vários de seus títulos nas estantes, alguns bem recentes, que ele não conhecia. “Que lugar fantástico!”, gritou em silêncio.

Por duas horas caminhou pelo interior da livraria. Os vivos não o viam, porque estava morto. Morreu no Brasil, aos trinta e dois anos. Era escritor desde os vinte, mas podia contar nos dedos as pessoas que o liam, e dessas, a maioria não gostava do que ele escrevia. Condenavam-no por suas críticas debochadas, por seu humor negro, às vezes repulsivo. Porém, quando morreu, muitos que o desprezavam – inclusive parentes, que nem o cumprimentavam – foram ao velório com suas máscaras de tristeza, e até o elogiaram! Ele estava lá e viu tudo. Ficou tão revoltado com aquilo que foi embora para nunca mais voltar.

Foi difícil, mas conseguiu ser transferido para uma comunidade espiritual francesa. Lia e escrevia em francês com fluência, o que ajudou muito. Às vezes, como naquela manhã em que esteve na 'Shakespeare and Company', recebia autorização para visitar cidades, passear por livrarias, sentir os aromas de café e charuto, que ele adorava. Tinha essa regalia porque trabalhava muito, escrevendo livros em francês sobre o mundo espiritual, que eram psicografados por Louis Goubert, um médium muito competente e dedicado.

Por ser um espírito literato, tinha acesso a inúmeras bibliotecas espirituais, mas nada se comparava ao prazer de visitar boas livrarias na crosta terrestre. Conheceu várias, na Bélgica, França, Alemanha, Holanda, Espanha, Portugal e Itália. E de todas, a mais acolhedora foi, sem dúvida, a 'Shakespeare and Company'. Foi uma das menores, mas a melhor. No dia em que a conheceu, havia vários espíritos passeando por lá, cruzando com ele pelos corredores, a maioria de leitores apaixonados, mas também de escritores (alguns conhecidos, como Ezra Pound, James Joyce e Albert Camus). E no ar, o tempo todo, um cheiro doce e amargo de café...

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 16/11/2013
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