HUMANOS - FOLHAS DE PAPEL ATIRADAS AO LIXO

Desisti de der humano. Agora quero estar na moda, ser desumano. Baixar os olhos ao passar por pessoas que conheço, mostrando-lhes todo o desprezo, além de fingir que não vi, não sei quem é, que elas não têm a menor importância. Dizer que são como folhas de papel arrancadas de um caderno, amassadas e atiradas ao lixo, sem a menor cordialidade ou pedido de desculpas.

Desisti de ser humano, quero sim a desumanidade dentro de mim, apelar para o consumo e consumir o nada, produzir apenas lixo, tratar as pessoas como lixo não reciclável, de forma intolerante e curtir coisas absurdas no face: cenas de seres ditos humanos brigando, seja mulher com mulher, seja homem contra homem, ou cenas de crianças dançando músicas banais, apelativas, de desprestígio moral, ético ou cívico. Compartilhar cenas de corpos mutilados em acidentes de arma branca, arma de fogo, enforcamento, acidentados barbaramente, barbaramente desrespeitar a condição humana de dor, dos familiares, amigos, parentes ou mesmo a identidade de quem já está morto mesmo. Comentar a vida de famosos, inclusive quando se é fofoca de traição, escândalo, embriaguez, enfim, desisti de ser humano simplesmente porque ser humano é cafona, está fora de moda, é careta, não é fashion, não está na mídia ou é ignorado pelos outros.

Prefiro agora os amigos virtuais que me elogiam pela minha falta de caráter, pela banalidade de minhas palavras, porque faço parte de uma torcida troglodita organizada, ando armado de arma de fogo ou cacetete e saio por aí plantando terror, ou então tenho o corpo todo tatuado, de forma apelativa, curto música que trata a mulher como vadia, mercadoria, e gay como aberração satânica, falta de vergonha, seres merecedores de porrada por nada ou de serem motivo de chacota ou vulgaridade.

Prefiro agora a falta de caráter, ser desumano, ter a desumanidade dentro de mim e ser omisso, não ter compromisso, nem discurso, nem ter curso na vida. Achar, ou invés de ter certeza, preferir informação à sabedoria, sorrir da condição humana de mendicância, de vulnerabilidade, de subvida a ter de promover sensibilidade, sensatez, esperança, moralidade, utopias, políticas públicas ou mesmo dignidade àqueles que necessitam de mim.

Desisti de ser humano, quero agora um pedaço de flande no local do meu coração, para que se enferruje logo e possa parar de bater ou ser sensível. No local do meu cérebro desejo um sanduíche da McDonald, compreender a vida como lucro desenfreado e nos meus olhos a cegueira das verdades religiosas manipuladoras de vontades alheias em nome de..., em nome de, em minha boca, quero a língua morta e nas mãos apenas as teclas digitais que me impedem de perceber a existência do outro e como verdade a ignorância dos tolos que justificam tudo pela vontade de Deus: Sou assim porque Deus quis, então... desisti de ser humano, talvez porque seja mamulengo e não tenha vontade própria de ser diferente.