Ah, se fosse eu...

No almoço ele comeu salmão assado com alho e cebola e bebeu uma taça de vinho tinto português. Na sobremesa, doce de leite pastoso com queijo curado picadinho. O resultado, até agora, são esses arrotos de odor mefítico, que ele lança no ar sem medo, porque está sozinho em casa (se não estivesse, teria mais cuidado, porque o cheiro é realmente muito forte). Do seu nariz escorre um muco ralo de alergia a mofo, que se pingasse em algum recipiente já teria dado um litro ou mais.

A esposa viajou com os filhos há três semanas; há dias ele não lava o banheiro nem arruma a cozinha; na verdade, não arruma nada. Sua respiração é difícil, suspira o tempo todo procurando alívio, um alívio que não vem – o oxigênio entra pelas narinas, passa pela traqueia, pelos pulmões, mas parece que não chega ao sangue como deveria.

De repente, como um louco, corre até o quarto, onde a cama, desarrumada há dias, empesta o ar com um cheiro azedo de suor e urina.

Nu, olha-se no espelho do guarda-roupa. Sua aparência é horrível. Quer largar tudo e começar do zero, em outro lugar, fazer outra coisa, algo que tenha a ver com literatura, poesia, cinema... Falta-lhe só coragem... muita coragem.

Antigamente seu sonho era ter uma editora, publicar livros, e também escrever, mas não deu certo. Hoje ele não passa de um funcionário padrão, um gerente de produção correndo atrás de prêmios e promoções – cumpre todas as metas estabelecidas pelos seus superiores, mas na vida é um perdido, um fracassado. Não sente mais prazer nem em ficar sozinho, nem em ler um bom livro ou escrever. Não segue nenhuma dieta, come qualquer coisa que acha na geladeira, na hora que dá fome, ou quando está ansioso. Para dormir, toma remédio.

Há alguns anos, para mudar de ares e fazer algo que o aproximasse um pouco do seu sonho de trabalhar com livros, começou a lecionar português numa escola estadual à noite. Foi terrível. Seus alunos do terceiro ano eram quase todos semi-analfabetos, não o respeitavam, ficavam o tempo todo mexendo no celular, conversando, rindo. Tudo que conseguiu nesse emprego foi alimentar ainda mais o desejo que ele tinha de se mudar para a Finlândia, Dinamarca ou Noruega, onde a educação é valorizada, as pessoas sabem ler e escrever, e ser professor é um orgulho.

Largou a escola, entrou em depressão. No trabalho, sua produção não caiu, mas as oito horas que ele passava por dia na empresa eram como temporadas no inferno, que continuavam em casa, de outro jeito: ele sem lugar, andando pelos cômodos, discutindo com a esposa, gritando com os filhos, tendo dores de barriga, gases... Até que a esposa viajou com os meninos... Viajar é modo de dizer. Foi embora. Partiu. E acho que não vai voltar, não vale a pena. Ela bem que tentou ajudá-lo...

Ah, se eu tivesse a chance que ele tem... Jovem, saudável, talentoso, com uma família adorável, mas fazendo tudo errado, queimando a vida com o que não lhe dá prazer, com o que, para ele, não tem o menor sentido... Ah, se fosse eu... Infelizmente, para mim, não tem volta, acabou. Faltei aos meus sonhos, não fiz nada por eles, troquei-os por poder, dinheiro e status, pequei por falta de amor, compaixão e caridade... Vi meus irmãos sofrerem e não fiz nada, por egoísmo, falta de tempo... O pouco que ajudei foi por interesse, para parecer bom aos olhos dos outros...

Hoje sou um espírito amargurado.

Há dois dias deixei meu corpo e tudo que ele acumulou durante a vida na matéria...

Estou só... Chove muito lá fora... Chove tanto, tanto, tanto... Dá vontade de ficar, mas tenho que ir...

Ai meu Deus, meu Deus, meu Deus...

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 08/12/2013
Reeditado em 09/12/2013
Código do texto: T4603941
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