SOMBRAS

De tudo, talvez, quem sabe fique apenas aquilo que passa. Era nisso que pensava enquanto com a polpa dos dedos acariciava os calos da outra mão na sala de espera do consultório. No colo magro, jazia o embornal preparado na véspera e os exames pré-operatórios – buquê de presságios – que silenciava a boca, enquanto a alma punha-se a gritar.

Tinha nascido e crescido numa daquelas casinhas moderadas de taipa e palha, daquelas que se amassa o barro e formam-se paredes, tinha mais apertos que excessos, roupa quarada e estendendida no varal, cheiro de alfazema, fogão a lenha, vizinha na cerca e gato preguiçoso esticado ao sol. Cidade pequena, igreja matriz, ponte e riacho, banco duro na praça. Diversão era missa e depois sentar-se debaixo da mangueira e esperar pelos rapazes que voltavam da lida. No cabelo, gomalina e na alma, alfazema - vestiam as roupas de domingo e ficavam indo e vindo, na esperança de ver e de serem vistos.

Aprendera a ler e escrever, a tabuada decorara aos empurrões. Quando acharam que já estava na idade, começou a aprender o ofício destinado às mulheres de sua família. Antes de chegar à linha e agulha, varrera muito chão, carregara incontáveis fardos de tecido, passara quilos de roupa com ferro a carvão, servira muito café. Mas nada se comparava ao prazer que sentia na hora de fazer entregas. Andava milhas que fosse com sol a pino, mas sentia-se livre, tinha a alma desnuda, uma alegria zombeteira de quem era passageira clandestina numa aventura.

Não podia acreditar no que via quando passava pelos umbrais daquelas fazendas aristocráticas, cheias de empregados empertigados em seus uniformes e egos engomados, tapetes com tramas belíssimas, quadros com cenas e cores cheios de efeitos, pratarias, mesas fartas, rendas, lustres, mulheres adornadas com as mais exóticas jóias, filhos com suas babás inglesas, maridos com seus charutos cubanos e cotações da bolsa, pianos de cauda, salões com grandes televisores, madonas e suas óperas, cavalos imponentes em suas baias. Era testemunha muda da opulência de um mundo tão incongruente com o seu.

Mesmo assim transitou por todos esses anos com facilidade entre chuleados, bainhas, moldes, alinhavos, cavas e caviares. Sempre sentada em sua pequena cadeira de junco, curvada sobre sua máquina perto da janela. Até que sua visão começou a turvar-se, as cores sempre pareciam amareladas, a noite já não mais enxergava direito... então o diagnóstico –– tinha catarata e precisava operar. Coisa simples, disse o médico. Fique tranquila. Foi quando os ponteiros do seu relógio fugiram. Onde tudo é sempre nada, onde tudo sempre faz tanto tempo.

De repente, se deu conta que tinha a invisibilidade das coisas que sempre estiveram presentes.