Batidas na porta da vida

Na casa um aroma da nova estação deveria entrar. Estava na hora. O aroma suave e cítrico, característico do reconhecimento e da esperança, deveria continuar a inundar as salas, os quartos. As gotas perfumadas de agradecimento sendo aspergidas em coautoria – passado e presente - num diálogo eloquente, um viva à vida, à alegria, à superação.

Não. Não é um sobrado. Deveria ser um solar, um monumento aos oriundi, à bravura, ao trabalho extenuante, às festas sem garçons e sem nenhuma sombra de suntuosidade. Festas com doces e salgados caseiros e as latas de leite Moça sendo compradas aos poucos. O refrigerante nem sempre era de marca consagrada.

Remexendo cautelosamente os armários começamos a revivenciar as fotos, os documentos, os discos de vinil. Na porta do meio do armário, a bolsa de vime onde a minha sogra carregava alguns sonhos que certamente não se concretizaram. Alguma imagem de Nossa Senhora, as últimas gotas de perfume num vidro do Boticário. As alianças de casamento dos últimos suspiros dos anos quarenta e depois, agregadas a elas, um círculo grosso de prata para a comemoração dos 25 anos de casamento.

Sinal de uma herança calada, que ainda vive e respira uma saudade nem um pouco triste.

E resolvemos, com carinho desmedido, reorganizar, reciclar e ofertar algumas coisas para pessoas de poucas posses. Tirando a poeira da cortina para se enxergar melhor o mundo lá fora, com as luzes que vêm de Pinheiros, limpando os lustres para que a luz do cotidiano brilhe com mais intensidade e verdade.

A televisão Telefunken permanece no seu cantinho, calada e paciente, recolhida ao seu móvel original de madeira clara, apenas observando o sono tranquilo daqueles que dormem no seu quarto.

A mesa da sala. Não foi dessa vez, mas será polida. Sobre aquela mesa a toalha verde clara recebia os baurus e as tortas de sucrilhos que a minha sogra fazia. Outras vezes, recebia o macarrão com frango, uma torta salgada e alguma salada. Na cabeceira, o meu sogro lia cotidiana e pausadamente a Folha de São Paulo e fazia interpretações esdrúxulas sobre qualquer assunto.

Dentro de poucos anos a mesa completará quatro décadas de imponência naquela sala. Foi comprada para o casamento do primeiro filho. E se exibe na sua grandeza de quantos acolheu.

A casa da vila Sônia foi tratada dessa vez, especialmente, como um espaço de preciosidades, sendo realizadas algumas mudanças para dar espaço ao novo. Um novo também alegre e receptivo, sem jamais desmerecer a importância dos antepassados, o orgulho do trabalho e da força dos oriundi, que edificaram a cidade com toda a sua pujança e um progresso até certo ponto incômodo.

A casa está lá, com bens imateriais explodindo pelos cantos. Imponente. Um grito calado de vida ecoa ali, com tantas pessoas queridas que partiram. A casa acolhe e abraça com o cantar feliz das maritacas que degustam as mangas no pé, com o casal de sabiás-laranjeira que faz o seu ninho e aguarda sua cria. Algumas mudanças, sim, para renovação, mas com um sentimento sereno de gratidão por todos aqueles que souberam fazer da vida e do acolhimento a maior de todas as artes: a arte do encontro, do encanto, das emoções refinadas dentro da simplicidade, franqueza e muito, muito amor.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 17/01/2014
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