O quadro

Caladas, as casas de adobe, com portas e janelas azuis, se colocam. Ambas se exibem em meio a montanhas mansas e verdejantes.

Montanhas das Minas Gerais? Quem sabe! Daquelas casas certamente muitos sonhos, trabalho árduo e dores também. Certamente muitas dores de numerosos partos. Impossível saber quantos sobreviveram àquelas condições de pobreza anunciada.

No primeiro plano, uma pequena charrete vai de encontro à porta principal. Um casal acompanhado de tufos de alfafa conduz o veículo. É. Pode ser alfafa ou qualquer outra espécie vegetal para a alimentação das poucas reses. A roupa minguada, desbotada no varal, espera pela energia do sol. Ou pelo vento.

O silêncio da vida ronda o cenário. Existência de poucas esperanças, de uma labuta só, quem sabe de poucas falas e muitas rezas. A lida de todos os dias declarada no esforço contínuo para a abertura daquele chão de terra tão bruta. Abertura do espaço provavelmente a facão. E de dores nos braços, nas costas, nas pernas.

O quadro.

Ganhei esse quadro quando da última visita à casa da tia Augusta.

Solitária, com o marido amado que já partiu e sem filhos, resolveu distribuir seus bens, companheiros de longa jornada, diante da decisão de ir em definitivo para uma casa de repouso.

O vaso de zamioculcas veio junto. De origem africana, as zamioculcas são conhecidas pela rusticidade e beleza, com folhas muito brilhantes, pinadas e de cor verde-escura, que chegam a um metro de altura.

A tia Augusta se despediu carinhosamente do belíssimo conteúdo do vaso, explicando didaticamente as razões da mudança. Garantiu a ele que seria bem tratado, ganharia casa nova. Iria de São Paulo para Florianópolis e ficaria bem.

Arruamos devidamente o vaso, demos de lhe beber bem na parada na divisa dos dois primeiros Estados do sul. As zamioculcas estavam em pleno estado de interrogação. Quanto tempo fazendo companhia para a tia e,de repente, não mais que de repente, uma mudança, assim, sem nenhum preparo psicológico, nada.

Mas o quadro mostrava os primeiros tempos de vida da tia. A dona Augusta lembrou rapidamente da infância pobre, do forno a lenha, do pão que era assado ali, da partilha.

Filha de imigrantes portugueses, nasceu no navio, a caminho de Santos. Infância triste, filha de mãe solteira num Portugal que teimava em não abandonar o conservadorismo, o tradicionalismo religioso tão refinado pelos trágicos tempos da Inquisição. 90 anos atrás não dá prá imaginar o quão penoso seria ser filha de mãe solteira... ainda mais na terra de Camões.

Em São Paulo, foi até faxineira e fez de tudo para ter uma vida digna. Casou-se com um operário. Foram companheiros fieis. E sempre visitavam os parentes.

Saíam do Jabaquara e iam pela São Paulo, ainda da garoa, visitar os seus na Vila Sônia, no Bonfiglioli e onde mais fosse.

A tia se definia como andarilha por essa terra tão sem limites. Sempre visitando, indo tomar um cafezinho na casa da cunhada, da comadre. Buscando mais notícias, estando presente. Nunca faltou a um casamento ou velório, na pior das hipóteses.

Hoje a tia Augusta se prepara, tristemente, para enfrentar uma casa de repouso. Entristecida, os parentes sumiram.

Pede com insistência para que eu volte a viver em São Paulo. Mas na vida existem muitas escolhas e de difícil revés.

Em meio à magia da cidade, o progresso e o desvairio também geram fantasmas, demônios. O relógio se coloca como mestre prioritário e jamais pode ser questionado. As metas, a produção, a seriedade do trabalho extenuante abandonam o princípio básico para a manutenção das belas histórias. O companheirismo, a visita mesmo infrequente, o telefonema semanal, a rápida visita acompanhada por um pedaço de bolo para o café perderam lugar para o gigantismo da cidade e do capital.

As enciclopédias vivas se vão, com lágrimas prestes a escorrer e com abraços apertados de dor da despedida.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 18/01/2014
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