Intermunicipal (ou 3938 sentido Pasárgada)

18h20. Eu, a Rio Grande do Norte e quinze trabalhadores com menos três reais e cinquenta e cinco centavos.O motorista sorri, a trocadora, não muito: um passageiro freqüente passa pela catraca e elogia seu cabelo novo, mudando a face da moça para satisfação completa, mesmo na hora do rush após um dia inteiro de trabalho.Ainda peguei bons resquícios de seu sorriso quando lhe entreguei o dinheiro.Devolvia-me o troco enquanto curtia o investimento com a outra mão.Brilhante, sedoso, linda.

A moça loura de cabelo amarrado debruçava-se no corredor para conversar com o amigo de bairro.Fazia tanto tempo que não se viam.Era a correria, muito trabalho em Belo Horizonte. A moça vivia um romance com sua carreira que certamente ia crescer, o moço, casado, pai de Valentina, de quem falava com o maior orgulho. Ambos tenros, esperançosos quanto ao futuro.É muito bom encontrar um velho amigo assim, né Jorge, no ônibus.Nem vemos o tempo passar.

Lá na frente, uma moça lia, concentrada. Forcei um pouco a vista e logo reconheci o livro: Cem Anos de Solidão.A capa azul petróleo, igual a do meu exemplar.Observei-a mais um pouco – limpava as lágrimas dos olhos, suspiro profundo.Aposto que estava na parte em que Marquez descreve a ascensão da moça-personagem aos céus. A moça-real-personagem, flutuando no banco do ônibus.E também eu.

Logo no banco de trás, uma conversa sobre o tempo. Tá seco demais, Bete,e passando tão rápido.Parece que foi ontem que entrei na copiadora, vinte anos já.Emprego seguro, né, garantia.Com ele que criei meus filhos, Paulinho já ta arranjando serviço, tem maior jeito pra carro.Tá lá na oficina do Osmar.

Ao meu lado, um homem grisalho olhava fotos de um bebê em seu celular. A pequenina sentada, deitada, com um laço de bolinhas, sorrindo para o senhor encantado que também sorria para ela, através do cristal líquido refletor de uma novidade amável.

E eu, que sempre fui de procurar o sentido da vida, percebi que ela estava ali, em pleno 3938 sentido Pasárgada, dançando singelamente na boca e nos olhos dos outros.

Texto escrito em 28/08/2010