Atacama

Não conhecia Fernando quando me abordou em Dezembro, 98, em uma boate fundo- de- beco de Punta Carreta. Acho que reconheceu meu portunhol visivelmente ridículo pedindo mais rum, pois se dirigiu diretamente a mim e começou a contar-me suas aventuras pelo Atacama. Por um breve momento fiquei satisfeito com meu entendimento fluente de castellano, mas palavras depois contou-me que era de São Paulo- falava português.

O Atacama é o deserto mais alto e árido do mundo, dizia insistentemente. Gostava muito do deserto, a ausência de vida externa combinada com o desejo de viver. Minha cabeça já doía àquela hora da madrugada, mas seu fascínio por aquilo que bem podia não ser em nada verdade, ainda assim, me encantava.

Fernando viajava sozinho há três anos, perambulando pela América do Sul. Seu sonho era preencher o espírito com a cultura de seu continente, não importa quanto tempo isso demorasse. De seus recursos financeiros nada falou, mas já havia conhecido todos os bares e bordeis do norte chileno. Lembro-me do vigor com o qual falava de suas prostitutas, olhares-máscaras de sensualismo adestrado que abrigavam os mais profundos sentimentos. Assim que se vê bem a cultura, dizia, na dor dos olhos, nas cicatrizes espalhadas pelo corpo. E não há nada mais alimentador de espírito que a compreensão de um sofrimento.

Ouvi Fernando até a boate começar a limpar o espaço, em dica explícita para fecharmos a conta. Durante este tempo, presenciei histórias fantásticas, os oásis daquele tão amado Atacama, a cultura travestida em pequenos espaços, os amores, mil deles, fertilizados na areia que nem os cactos se enraízam, a música, as dunas móveis envolvendo ardentemente cada corpo dançante, a dança de suor e sangue e arte. Uma vida que nunca tive me projetando para algo hipnotizante, intenso e enriquecedor...apenas suas palavras foram o suficiente para me convenceram a segui-lo, entendê-lo, quem sabe amá-lo, turbilhão de todos os sonhos que nunca segui, era isso, vida em contraste com deserto exterior, vida mesmo,vigor.Já havia me decidido, não voltaria para minha medíocre firma de engenharia, não teria esposa, nem filhos burgueses, só o que o vento me trouxesse e a aventura alimentasse.Isso sim seria existir.

Antes de sair para minha intensa jornada de espírito, precisei ir ao banheiro, já quase limpo por uma faxineira mal-humorada que faltou me bater quando viu que ainda havia dois clientes. Mijei, lavei o rosto.Olhei fixadamente para o espelho, procurando qualquer coisa que denunciasse alguma sobriedade, um território comum.Voltei a Fernando, angustiadamente contente, e perguntei-lhe sobre como seria nossa vida.Deu uma gargalhada enorme, chamou-me de idiota e vomitou na minha roupa.

O dia seguinte me deu uma ressaca homérica, como se as minhas doses de rum se multiplicassem a cada vez que eu pensava nelas e percebia minha incapacidade de sair da cama do hotel. Acho que foi o Atacama, tipo de sonhos de vida que mais distraem do que se realizam. E o deserto não estava mais lá fora, era por dentro.

Texto escrito em 09/07/2010