Aono-Domon, o túnel da esperança - final

Jitsunossuke sentiu seu coração vacilar. Pensou no sentido da sua vingança frente aquele monge velho, obediente e honesto, que aceitava e concordava com tudo, sem impor nenhuma condição. Ele sentia desaparecer a motivação para a sua vingança, porém se ele não a realizasse, não castigasse aquele homem, perderia a única possibilidade de reconstrução da sua família. Toda a dificuldade e o sofrimento dos longos nove anos da sua peregrinação perderiam o sentido. Jitsunossuke empunhou a espada, aproximando-se de Ryokai. Nesse momento, ouviram-se altos brados dos trabalhadores no túnel e logo em seguida cinco ou seis operários se colocaram entre o monge e o seu algoz, impedindo qualquer movimento.

"Senhor, o que está querendo fazer com o nosso mestre Ryokai ??" gritaram eles.

"Não estorvem este ato ! A causa dele é muito antiga ! Não permitirei que continuem impedindo a minha decisão !" , exclamou Jitsunossuke com a espada fora da bainha. Mas eles cercaram o monge Ryokai, protegendo-o com os seus próprios corpos e um velho advertiu:

"Não existe luta hostil mútua no mundo purificado, nem relação entre amigo e inimigo. Veja bem, senhor samurai !"

O povo da região do rio Yamakuni acreditava que o monge Ryokai era a reencarnação de um santo poderoso e ninguém podia tocá-lo, nem com a ponta de um dedo. Porém, apesar de toda aquela gente reunida estar lhe oferecendo oposição, Jitsunossuke ainda precisava cumprir a sua decisiva missão, mostrando o espírito de um samurai.

"Ninguém pode permitir um crime de assassinato ao seu senhor, mesmo que esse assassino seja um monge ou um santo ! Abram já o caminho ! O diálogo é inútil !" exclamou.

Jitsunossuke preparou a sua postura empunhando a espada, porém aqueles homens também se acautelaram contra o ataque iminente, tomando suas atitudes. Nesse momento, o monge Ryokai gritou com voz firme:

"Contenham-se todos ! Deixem-me ! As suas atitudes de defenderem-me são inúteis ! Eu devo entregar a minha vida a esse filho fiel e obediente ao pai !"

Quando o monge Ryokai, libertando-se da proteção das pessoas, aproximou-se de Jitsunossuke, o chefe dos pedreiros adiantou-se e falou:

"Senhor samurai, nós queremos que o senhor considere a possibilidade de adiamento da sua vingança, até que o trabalho do túnel esteja terminado. Nós esperamos uma manifestação da sua consciência, para que nos entregue a vida do monge Ryokai durante mais um tempo, até o término dessa obra, pela qual ele apostou a sua vida. Quando o túnel atravessar a montanha, o senhor poderá legalizar imediatamente a sua decisão."

Quando o trabalhador terminou a sua súplica, a multidão, que ali já havia se formado, naquele momento crucial, apoiou as suas palavras com grande clamor. Jitsunossuke viu-se compelido a aceitar a opinião daquela gente, finalmente concordando com as condições solicitadas.

Porém, quando todos se afastaram, vendo-se sozinho, Jitsunossuke sentiu-se arrependido e enganado, lamentando-se por perder a oportunidade de executar a sua vingança, aceitando involuntariamente a súplica inesperada do povo. Lembrando-se dos longos nove anos de peregrinação agora perdidos, sua paciência se esgotou. Lembrou com saudades da sua família e a sua cabeça e o seu coração foram se transtornando de irritação e angústia, chegando a perder a consciência e o domínio das suas ações.

Decidiu então executar a sua vingança de qualquer maneira, entrando furtivamente no túnel, na madrugada daquela noite. Porém, a sua decisão não foi realizada naquela ocasião, porque a vigilância dos pedreiros na entrada do túnel estava muito rigorosa. No entanto, no quinto dia de espera, às três horas da madrugada, conseguiu entrar silenciosamente no túnel sem ser percebido. Andou às escondidas naquela escuridão, tropeçando nas pedras e apoiando-se nas paredes do túnel, por uns 40 minutos, até escutar um rumor intermitente que vinha do fundo. Esse som aumentava cada vez mais, no mesmo ritmo dos seus passos, de uma forma algo sobrenatural. Quando sentiu que estava próximo do monge, seu coração começou a palpitar cada vez mais forte, ao ritmo dos choques violentos dos sons de cada pancada da marreta de Ryokai. Ele foi se aproximando pouco a pouco, acompanhando o som de cada pancada de marreta. Enfim, conseguiu aproximar-se do seu inimigo na escuridão, mas chegando por trás dele, com a espada já empunhada, ouviu a voz indistinta do monge que rezava as doutrinas sagradas, acompanhando ritmadamente o som de cada pancada. A voz rouca e trágica penetrou em suas vísceras e em seu cérebro, arrepiando o seu corpo inteiro. Jitsunossuke sentiu-se completamente hipnotizado, perdendo toda a sua resistência e energia. Ele enxergava o vulto bruxuleante de Ryokai, sentado no meio da escuridão, marretando seriamente a rocha, dentro daquele mundo silencioso e isolado. Ninguém estava acordado naquele momento, até as almas dormiam. A figura de Ryokai não tinha a forma de um homem, era uma massa de energia concentrada. Jitsunossuke perdeu os sentidos. Quando voltou a si, já estava completamente derrotado pela manifestação inviolável daquele sumo sacerdote. Ele saiu do túnel às pressas, com o corpo abundantemente molhado de suor, decidindo que esperaria o prazo proposto.

Passados alguns dias desse acontecimento, cansado de esperar, Jitsunossuke se propôs a participar também dos trabalhos, acompanhando o pedreiros e os homens que carregavam os pedaços de pedras. Depois ele postou-se ao lado de Ryokai, enfrentando a rocha dura no fundo do túnel, com uma marreta e um escopro pesados. Ele sentiu esse trabalho muito duro e sacrificante, bem mais do que imaginara, reconhecendo a dificuldade e o sofrimento do monge Ryokai, que vinha trabalhando há mais de vinte anos seguidos.

Depois de um ano trabalhando na companhia de Ryokai, Jitsunossuke transformou-se completamente. Esqueceu-se e desapegou-se de tudo, reconhecendo o verdadeiro valor de um ser humano autêntico. Agora, inconscientemente, no seu íntimo, respeitava profundamente o monge Ryokai. Penetrava-lhe na alma a vibração da auto-realização infinita e da auto-libertação verdadeira, pela concentração de toda a capacidade em cada momento. Mais meio ano se passou e o trabalho no túnel chegava ao fim.

Em uma madrugada de novembro de 1748, o monge Ryokai deu uma forte pancada com a marreta na rocha, que se despedaçou no vazio, entreabrindo uma brecha na montanha. Ele exclamou: "Oh !" contemplando pela clarabóia recém-aberta o céu estrelado, a paisagem silenciosa e o rio lá embaixo, que espelhava a luz prateada da lua. Levantou-se lentamente, segurando-se na parede da caverna.

"Minha prece está realizada !" exclamou. Lágrimas correram silenciosa e sucessivamente pelo seu rosto radiante de felicidade. Em seguida, chamou Jitsunossuke, que dormia ao lado, mostrando-lhe a paisagem noturna, o céu, o rio Yamakuni e o luar.

"Parabéns ! Parabéns, mestre Ryokai !" gritou Jitsunossuke, cumprimentando efusivamente o monge e, profundamente emocionados, eles choraram juntos e abraçados.

Depois de alguns momentos, que parecia haver passado uma eternidade, o monge Ryokai falou calmamente: "Senhor Jitsunossuke, agora, neste momento, terminou o prazo do nosso compromisso ! Por favor, eu quero saldá-lo imediatamente ! Não deve haver mais demora, porque, quando aparecerem os pedreiros, eles provavelmente impedirão a sua realização. Mate-me logo ! Realize a sua vingança !"

A aurora despontava e a voz grave e rouca do monge Ryokai ecoou dentro do túnel, acompanhada da corrente de ar fresco e puro que entrava pelo lado recém-aberto da montanha.

Jitsunossuke ajoelhou-se em frente de Ryokai e chorou continuada e convulsivamente. Eles se abraçaram novamente e, juntos, choraram repletos de alegria !

---------------------

Esse túnel chama-se Aoono-Domon, que significa "Túnel da esperança". Existe na ilha de Kyusho, no sul do Japão e tornou-se um símbolo, um ícone vivo de um acontecimento real, uma história lendária que passou às tradições japonesas como demonstração cabal da capacidade imensurável e desconhecida do ser humano.

Transcrito e adaptado segundo a narrativa feita por Tomio Kikushi em São Paulo, no dia 5 de maio de 1978.

Humberto DF
Enviado por Humberto DF em 27/04/2007
Reeditado em 07/09/2007
Código do texto: T466280