“Música ao longe”

Humildemente, tomo emprestado o titulo do saudoso e espetacular Érico Veríssimo. Foi esse o escritor notável mais próximo da minha juventude, junto de Drummond, é claro. Tomei conhecimento e paixão pelo Érico, pelo seu humanismo refinado e raro senso de observação, graças ao meu tio Dante, nas suas visitas à nossa casa, no Cambuci, nos anos 70. Conversávamos muito sobre política, guerra do Vietnã, Guerra Fria, ditadura, coisas da vida e muita, muita literatura.

Muitos anos mais tarde quase morri de inveja de uma colega: a mesma fora aluna do Érico na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Demonstrando uma infantilidade exagerada e fora de contexto, eu disse a ela:

-“Geni, se eu fosse você, contaria isso prá todo mundo. Só prá fazer desaforo”. E rimos no final, da minha tolice tão extravagante e inconsequente.

Permita-me, então, meu doce Érico, tomar emprestado o seu título dos anos 30.

Eu me refiro à sábia senhora de 460 anos. Uma aniversariante única, carregada de símbolos, graças, sonhos e sofrimento. Sim, São Paulo é uma senhora, de cabelos grisalhos e sem tingimento. Não tinge porque não tem vergonha do tempo. Antes: tem orgulho da sua história de vida, pelo acolhimento de milhares de migrantes e imigrantes, pelas inovações, pelas propostas de mudança que sacudiram o país inteiro... e tantas vezes.

Uma senhora que nem pensa em descansar na cadeira de balanço e não tem andador como protetor antiquedas. Simplesmente caminha. Com segurança e com passos firmes e decididos. Também não tem aparelho de surdez. Ela ouve muito bem e até se preocupa com os jovens que colocam no ouvido aquela coisa para só eles ouvirem as suas músicas. Esses, sim, ficarão surdos e não ouvirão os gritos das dores de parto, pois em São Paulo os nascimentos são doloridos. E aos montes acontecem nas ruas, nas ambulâncias, em casas de parteiras, nas casas das comadres.

Em São Paulo se nasce a todo instante. Sonhos nascem e morrem nas esquinas, nos sobrados geminados, no Trianon, nas periferias, na solidão dos jardins do Museu do Ipiranga. Retratos de sonhos e de interrogações se exibem às centenas no Museu da Imigração, com olhos puxados, outros de narizes achatados. Homens e mulheres de cabelos loiros ou nem tanto. Gente de todas as raças, crenças e desejos se retratam ali, nos seus medos, saudades e buscas.

Foi inebriante a primeira vez que ouvi “Trem das Onze” aqui em Florianópolis. A música ecoava em grandeza numa unidade da Universidade Federal. Fiquei paralisada, com olhos marejados. Atônita e sem ação. Simplesmente fiquei.

À distância, eu ouço a cidade que pulsa incessante. Ouço e vibro diariamente. Seja pela voz do Adoniran, seja pelo silêncio das fotografias. Via Internet, eu procuro o “Samba do Arnesto” e aproveito a me deleitar com as imagens do Braz. Contemplo a lata de panetone Di Cunto, estampando a imagem do fundador, Sr. Donato, engravatado, a se exibir triunfante na minha cristaleira. Lendo a Folha, me lembrando dos bairros adorados e de forte presença operária, estou em São Paulo.

Eu me orgulho por ter alma paulistana e sentimento catarina.

E congratulo essa cidade única, imperdível, culturalmente inovadora e ativa.

Cidade singular nas suas madrugadas, no samba da vela, na pizzaria que teima eu queimar toneladas de lenha para produzir uma iguaria fina na sua poesia e história.

Cidade plural na produção do conhecimento, das criações artísticas, dos avanços da medicina, da acolhida de novas tendências na arquitetura, na moda, na gastronomia.

Estou em São Paulo a toda hora: lendo, escrevendo, fotografando, revivendo casos corriqueiros e extraordinários, vivendo, existindo. Ou simplesmente respirando.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 25/01/2014
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