Ainda dá tempo

Vejo-te na chuva, encostado no muro de arrimo. É água que não acaba mais, a avenida lá embaixo já é um rio caudaloso, raios cortam o céu em todas as direções, iluminando o morro, as casas, os prédios – tudo abandonado. Só eu te vejo, e não farei nada, não darei um grito, um sinal, nada, pois sei o que você pretende, e te admiro por isso, Miguel, muito. Sua mulher ficará bem, a pensão é pouca, mas vai dar para as refeições, o salão de beleza e o clube. Seus filhos também ficarão bem, aqueles ingratos – e tenha certeza que os vagabundos queimarão todos os seus livros e usarão sua biblioteca como despensa para as tralhas deles.

Vejo-te aí, Miguel, esperando o morro desabar em cima de você; estou de longe, mas te vejo muito bem, você emagreceu, está pálido, parece mais velho...

É o que eu sempre digo: esse capitalismo é realmente terrível; olha só para você, completamente perdido, com uma família sanguessuga que só pensa em dinheiro, carros, motos, viagens, festas, herança, obrigando você a aturar aquela maldita firma, a postergar a aposentadoria 'ad aeternum' – e você dá duro, que eu sei, trabalha dez, doze horas por dia, é humilhado pelo patrão, enquanto os privilegiados da panelinha se dão bem, aquele bando de puxa-sacos medíocres e preguiçosos, que só contam mesmo com a bajulação e a amizade para se manterem nos cargos – que eles acham vantajosos, porque têm salários de dois mil, três mil, quatro mil... Coitados...

Mas agora você decidiu, não é, Miguel? Vai se libertar. Só não entendi por que escolheu o muro de arrimo. Não seria mais fácil um tiro nos miolos? Você conseguiria uma arma de fogo aqui mesmo no bairro, era só anunciar ali no bar do Zé Pedro, tem um monte de gente lá que te arrumaria uma na hora. Mas você sempre gostou de ser diferente, não é? Aposto que deixou um bilhete de despedida na mesa da sala ou no banheiro descrevendo seu corpo embaixo de dez toneladas de escombros e lama. Que falta de praticidade!

E se esse muro não cair hoje? (embora tudo indique que caia; a defesa civil garantiu que ele não aguentaria uma chuva assim, eu li no jornal ontem). Vai cair. E você vai morrer.

Ai meu Deus, quem vem lá? Eu sabia. Miguel, Miguel... no bilhete de despedida você colocou o endereço do muro de arrimo?! Não pode ser. Como é que seu filho descobriu? Não importa. Seja forte, Miguel, resista. Olhe para ele, o mais vagabundo dos três, o mais interessado na miséria da herança que você vai deixar. Você sabe que ele é maconheiro, que vende drogas na faculdade? Que vai abandonar o curso de Direito para fazer História? Que a namorada dele está grávida e que é você que vai sustentar o bebê, e todos eles, até o fim da sua vida? Que você nunca vai poder se aposentar para fazer o que gosta? Você sabe disso, Miguel? Se não sabe, receba esta mensagem telepaticamente e faça o que tem que ser feito. (Maldita a hora que você decidiu pelo muro de arrimo, que estupidez!, se tivesse optado pela arma de fogo, era só puxar o gatilho, e ainda sujaria seu filho todo com sangue e massa encefálica se ele aparecesse na hora, sem ter que se molhar nessa maldita chuva esperando a natureza agir). Aja, Miguel, se não tem arma, jogue-se do morro agora, pule de cabeça, ali embaixo é asfalto, vai ser perfeito, não ouça esse rapaz, ele quer seu mal, ele te odeia... Não, abraço não! Desvencilhe-se, Miguel, não o perdoe, ele não te ama, ele só quer seu sangue, sua miséria! Não diga isso, Miguel, amor não existe, Deus não existe, não se entregue, a vida é horrível, HORRÍVEL! Mudar? Ser feliz? Como? Não dá mais tempo, acabou, ACABOU!... Não faça isso, Miguel... Não, não, não...

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 26/01/2014
Reeditado em 27/01/2014
Código do texto: T4665616
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