Sonhos rasgados

Com alegria exultante, eu corria São Paulo com tênis macio. Não me lembro da marca. Marca prá quê? Nunca fui de grife. Mas o tênis não tinha cadarço. Explico: nunca fui suficientemente apta a dar laços. Ainda em tempos de correr da polícia, o melhor era ter menos possibilidade de cair tropeçando nos próprios pés.

“Diretas-já” era a palavra vibrante, que pulsava nas veias, nos olhos que gostavam de brilhar, nos sonhos que teimavam em sonhar alto. O ano de 1984 prometia ser único, de união dos pensamentos e sentimentos na busca do novo, criativo, humano.

No Viaduto do Chá, naquele 16 de abril, eu estava lá, como estava em todos os movimentos contrários à ditadura. Rostos esperançosos, jovens com vigor na tentativa e construir um Estado de Direito.

Naquele dia, na cabeceira do viaduto, de uma vez só, segurando uma faixa pelas Diretas, com largos sorrisos estampados, vinham as lideranças políticas contrárias ao arbítrio. Não dava prá andar. A multidão fervilhava. Não se falava em outra coisa. Um Brasil melhor, de verdade, dono dos seus destinos haveria de nascer.

E os jornais exibiam até nas propagandas, triunfalmente, as duas cores da Casa de Bragança e dos Habsburgo.

Eu jamais vira tanta energia, tanto orgulho pelo verde e amarelo! Uma pulsação única e densa, distante das evasivas dos tempos de Copa, quando tudo acaba com o resultado final. Guarda-se as bandeiras e tudo volta como Dantes no quartel de Abrantes.

Ao longo dessas três décadas, em que derrubamos o militarismo, a censura e a prisão política, inegáveis foram os avanços. Só quem conheceu o passado ainda não tão remoto assim pode atestar, mas uma parte gigantesca da sociedade que me perdoe. Uma parcela imensa da sociedade ainda permanece bebê.

Bebê mesmo, gugu dadá. E sem nenhuma vergonha de não crescer.

Essa parte enorme, gigantesca, colossal da sociedade que teima em não crescer é aquela que só reclama direitos, mas não desconfia que deveres são bons e necessários. Não é só o dever de honrar pagamentos de impostos sem-fim. É dever de ajudar a criar uma Nação verdadeiramente digna.

O jornalista e escritor belga Louis Pauwels, dizia “Não acontece aos homens aquilo que eles merecem, mas sim o que se lhes assemelha." Daí a conclusão óbvia de que quem está no poder não veio de Marte ou de Plutão. Veio daqui mesmo, desse planeta de “provas e expiações”.

Assim, falar eternamente mal das elites políticas, sempre comprometidas com a obsessão pelo poder e por interesses próprios, independentes de partido, é uma das manifestações de infantilidade. Vira samba de uma nota só, sem solução e com um nefasto conformismo.

Na realidade, todos têm responsabilidade pelo sonho despedaçado das Diretas-Já. As elites políticas nem de longe cumprem e jamais cumpriram a sua função. É necessário cobrar, exigir com responsabilidade e atenção, muita responsabilidade mesmo e de olhar maduro,com argumentos infalíveis.

Enquanto isso, parte da sociedade reclama e reclama e reclama.

Reclamar direitos só é justo e bom quando se dá a contrapartida.

Onde está aquele jovem que reclama da falta de verbas para a educação mas falta às aulas, rabisca a carteira, cola na prova com o discurso ridículo de “quem não cola não sai da escola” , danifica livros da biblioteca e assume o que fez? Rapidamente vem alguma desculpa e milhões apoiam a reclamação... afinal estamos num estado democrático e pode-se falar o que quer.

Onde está aquele outro que não respeita as leis básicas de trânsito, coloca o carro na rua mesmo podendo ir a pé e reclama do caos urbano? Outros milhões enchem a boca: “faltam políticas públicas”.

Vem o outro, o motociclista, deitado sobre a moto e em alta velocidade pelas estradas. Provoca acidente, mas no hospital faltam recursos básicos... e o sujeito que provocou acidente porque quis esperneia como criança com fome e querendo mamar. E diz: “eu pago imposto e não tem atendimento adequado. Mais verbas para a saúde...” E lá vai crítica à saúde pública. (P.S. estou longe e dizer que a saúde pública é um primor).

Ou melhor, ele não diz “ faltou atendimento adequado”. Ele diz: “é um tipo assim, meio sei lá. Eu tava ino e veio o caminhão, tipo correndo, tipo assim, cara, na minha frente. Sei lá. Voei, mano. Porra, cara, voei assim, tipo vum. Tipo doido. Piração, cara”.

E depois vêm os Black blocs com as suas máscaras.

Peraí, máscara? Por que não assumem quem são? Máscara é a expressão do tudo igual, não oferece identidade, rosto. E essa máscara exibe um sorrizinho irônico, de quem sabe tudo. E quebram em praça pública para ainda ficar pior.

Resolvem destruir patrimônio público, agências bancárias, etc e tal.

Garotos e garotas, uma pequena contribuição. Pensem no seguinte: vocês não vão acabar com o capitalismo assim nunca. Nunquinha. Até porque vocês adoram comprar, exibir grifes, comer muito mais que o necessário, sem contar os i-pad da vida que vocês ostentam ou desejam ostentar. Falar em quebrar o capitalismo dessa forma é coisa velha, atrasada, vetusta... e vocês são mocinhos. Tem coisa errada aí, gente. Leiam mais e vocês vão entender. Quer dizer, espero.

E agora mataram um cinegrafista no Rio.

Meu Deus!

Sem contar que o sujeito que lançou o artefato correu. Mas correu por que, bem? Se foi homem para lançar seja homem para assumir. Bem, acho que isso é querer demais.

Jovens, reajam! Usem a força, a união, o debate, a criatividade para inovar. Faltam políticas públicas sim. Sempre faltou. Tirem a máscara e assumam quem são. Vocês são belos, com muito a construir. Assumam que deve-se cobrar muito, mas tem que se fazer também e melhor. Isso se chama “ dar a contrapartida”.

Democracia, garotos e garotas, envolve um esforço desmedido para a construção. Está longe de ser falar o que se quer e só. Tem tudo a ver com o empregar a força criativa não apenas para o interesse próprio, mas para fazer desse país um espaço de direitos reais, concretos.

Faltam políticas públicas? Lógico que sim. Então, ajudem a criá-las.

Faltam verbas para a Educação. Evidente. Então, estudem mais e cuidem do seu patrimônio para que se dê visibilidade e importância à união dos estudantes por essa causa justa.

Faltam verbas para a saúde? Nem discuto. Então, cuidem também mais da sua própria saúde, consumindo menos, passando longe das drogas e se cuidando mais.

A violência está insuportável? Então eduquem os seus filhos para aprender a respeitar os outros em todas as situações.

Um cinegrafista morreu no Rio enquanto trabalhava. Registrava as manifestações populares.

Pobre sociedade que confunde democracia com mesquinharia! Pobres de nós se continuarmos assim.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 11/02/2014
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