Arrependimentos de Atos Heróicos

Vejo as luzes passearem pelo teto, aquelas luzes de lâmpadas econômicas. Estou numa maca olhando para cima, três pessoas me levam em direção a uma salinha no final do corredor, sinto aquele cheiro enjoativo de hospital, sinto que minha camisa esta molhada, tento olhar mas dói, dói muito.

- Não se mexa, vai ficar tudo bem – diz uma voz em cima de mim.

- O, o que aconteceu? – falo com dificuldade.

- Você foi baleado.

A noticia veio como um tiro, sei que isso soa engraçado saindo da boca de uma pessoa que acaba de ser baleada, mas é a única comparação que consigo encontrar agora. Não me lembro onde, como e por que fui baleado, minha memória está envolta numa névoa, lembro perfeitamente de quem sou e o que faço mas não me lembro do que aconteceu horas atrás.

A maca bate com violência na porta de uma sala chamada cirurgia. Sou levado até o centro da sala e fico sob um lustre com uma luz forte que chega a queimar meus olhos, um dos médicos coloca uma mascara como se fosse a de um aviador na minha face, sinto aquele ar do sono mortífero pesar minha consciência como se tivesse roubado algo de alguém, sinto a faca ou lamina ou bisturi seja o que for cortar minha camisa, sinto uma pena, lembro que tinha pagado caro nesta camisa. Minha vista começa a sumir, tudo começa a ficar preto, meus pensamentos diluem como sal na água, meus olhos pesam e sinto-me carregado a algum lugar escuro, sinto- me morrer, sinto-me dorm...

...

...

...

Beep...

Beep...

Beep...

- Ele está bem?

- Não se preocupe senhora, conseguimos retirar o projétil, não afetou nenhum órgão vital, mas por pouco não atingiu o coração.

- Graças a Deus! Mas ele corre algum risco ainda senhor Doutor?

- Riscos irrisórios, ele vai ficar bem.

Beep, Beep, Beep. Foi a primeira coisa que eu ouvi, abro os olhos, parece que pesam toneladas. Olho em volta, vejo que o sol da tarde entrar pelas frestas da janela deixando o quarto alaranjado, nunca vi uma cor tão bonita. Tento levantar, mas dói, ah alguns tubos presos em meus braços como se fossem veias, tento ver o que os mesmos ligam e parece que estou no soro...

- Boa tarde – diz a enfermeira entrando no quarto trazendo uma bandeja com alguns pratos.

- Boa tarde – digo com dor – o que aconteceu?

- você foi baleado, mas passa bem, logo trarei sua janta, passou cinco dias alimentando-se apenas de soro, precisa mastigar alguma coisa – enquanto a enfermeira fala, ela deixa a comida na cama de um senhor.

- Baleado... – falo comigo, agora começo a lembrar o que aconteceu. Eu estava saindo de meu emprego como balconista em uma farmácia, eu estava passando enfrente a um banco quando ouvi tiros, me joguei no chão, notei que os assaltantes saiam do banco e iam em direção a uma garotinha ainda atirando em direção do banco, notei que a garota não se jogara no chão, sabia que com o susto dos bandidos eles atirariam e matariam a garota inocente, sabia que iria ser trágico. Levanto-me, corro, pego a garota e tiro ela do caminho da morte, mas tomo o seu lugar e com o susto do assaltante ele dispara uma, duas, três vezes, sinto minhas pernas sumirem e caio... Despenco.

- O que houve com a garota? – pergunto a enfermeira já saindo do quarto, mas ela não responde.

Aquele quarto de hospital estava começando a me sufocar, nunca gostei de hospital, mas agora, minha vida dependia deste lugar. Mais um chega ao quarto, um homem todo enfaixado, com tubos em todas as partes do corpo, com crianças e uma mulher chorando ao lado, com um médico com cara de médico fazendo e falando quando o medico tem certeza que ali ele não ficara por muito tempo, tento perguntar a enfermeira que alimentava o senhor ao meu lado o que teria acontecido aquele homem que agora parecia um carro alegórico cheio de ferro.

- O que houve com ele – pergunto baixinho.

- Acidente de carro, dirigia bêbado e foi de frente em um caminhão.

Fico calado, olho novamente para o homem se poderia falar que aquilo era um homem, tinha mais ferro e tubo do que propriamente homem.

Os dias passam, minha família, ou melhor, minha esposa vem me visitar, tenho a noticia que quase ela tem um filho sem pai, grávida de dois meses, não posso gritar “hurra” porque dói mas logo terei alta.

O homem do acidente morre, uma cena triste, infelizmente tive que presenciar, pensei que poderia ser eu, vi até as manchetes no jornal: “Homem sacrifica-se para salvar garota de morte certa”. Seria egoísmo meu, minha mulher agora grávida não teria alguém para ajudar-la porque salvei uma completa desconhecida, talvez seria um herói para os outros mas não quero ser herói para os outros e sim para meu filho ou filha que estar para nascer daqui a sete meses.

Depois de dois dias tenho alta, está tudo cicatrizado e perfeito, saio daquele hospital que nem um presidiário sai da prisão, saio dali com a certeza que nasci de novo, com a certeza que deixarei para o Super-Homem salvar criancinhas.

Não sei se meu tiro foi em vão, nem me lembro do rosto daquela garota, não sei onde os outros dois disparos foram parar, e a qual coração acertou, não fui um bom samaritano, não procurei a mídia depois disto, não dei reportagens sobre o “ato heróico” ou coisa do tipo, a única coisa que me aconteceu foi que fui demitido pelo tempo que passei no hospital, mas eu já sabia que isso iria acontecer, chegara um dia que trabalharemos baleados para outro não ocupar nosso lugar. Sobre a garota... Não sei, e nem quero saber. Sobre minha mulher, tivemos uma linda menina, a - nomeei de Mariana, e certamente serei o herói dela, com orgulho.