Crônica da água - reeditada

Pelo menos três vezes por semana tento fazer a minha caminhada matinal. Acontece que, por onde passo, sempre me deparo com algumas cenas cotidianas. E quase sempre tem alguém lavando uma calçada. Naquele dia, era uma senhora com uma mangueira. Não posso deixar de dizer que a água que jorrava, abria um caminho forçado no meu peito. Ai, lembrei, que já havia visto aquela mulher lavando a calçada.

Mas naquele dia foi demais para mim, aquilo me sufocou e de alguma forma senti que chegara a hora de fazer algo a respeito.

Lembro que meus pensamentos estavam em ebulição, pois nunca havia conversado com aquela pessoa, nem mesmo sabia o seu nome. Mesmo assim, não desisti. Primeiramente tentei encontrar algum equilíbrio interno para me lançar no embate, pois o trabalho era árduo, mas precisava ser feito. Naquela altura meu coração já batia acelerado, minhas pernas estavam bambas e, ao mesmo tempo, pensava em como ser simpática sem ser invasiva. Além disso precisava me preparar para ouvir qualquer coisa do tipo: “O que você tem com isso?” ou “Vem cá eu te conheço?

Mesmo assim segui em frente, procurei pelas palavras certas e comecei:

A Senhora não me leva a mal não, falei com a voz gaga, mas está desperdiçando água.

Ela me respondeu, inofensiva:

Olha meu bem, em casa eu economizo bastante água, mas aqui não tem jeito, todos os dias a calçada exala um cheiro de urina e fezes que pessoas e animais depositam aqui em frente à minha loja, portanto não há como limpar senão for com água.

Devo dizer que ela me desconcertou. Em parte, ela tinha razão, mas minha indignação ainda estava lá comigo, fincada na palavra “desperdício”; palavra que, naquele momento, não foi compreendida ou talvez ignorada. A minha indagação não era só pelo fato de a mulher estar usando a água para limpar a calçada, mas também o modo como ela estava fazendo aquilo.

Ainda assim continuei pensando nas várias maneiras que existem para economizar o bem mais precioso do planeta. Pensei também em explanações, dados científicos e tudo mais que existe na literatura para continuar aquele diálogo, mas meu esforço e energia já haviam se esvaído no primeiro contato. Além disso, pensei que seria ridículo da minha parte dizer a ela como usar um balde e uma vassoura para lavar a calçada.

E, mesmo com aqueles pensamentos ainda em minha mente, concordei com sua explicação, agradecendo e seguindo o meu caminho, sabendo que, de alguma forma, as nossas manhãs não seriam mais as mesmas.