Relatos de uma despedida

Manhã de terça-feira. 18 de fevereiro de 2014. Sol. Calor forte. Algumas nuvens acinzentadas espalhadas pelo céu. Na cidade, os termômetros marcavam 30 graus. A pauta indicava o caminho: cobertura de um velório. Uma menina de apenas quatro anos, vítima fatal de um trágico acidente, seria alvo da atenção de pessoas que acompanhavam o caso há dois dias. Seu pequeno corpo nem esfriara e sua história efêmera já estava sendo devastada por estranhos. Estranhos a ela e a sua realidade. Estranhos à família, que sofria uma dor imutável e intransferível. E eu vagava entre os estranhos.

Paulatinamente, andei pelas capelas do cemitério, olhando ao redor e buscando uma explicação para tudo o que acontecia. Em meu íntimo, um grito sufocado. Eu não deveria estar ali. Aquele momento era voltado para a família, que merecia respeito e silêncio. Meu olhar se confrontou com tantos outros. Neles, pude ver dor e revolta. Afinal, de quem seria a responsabilidade por uma partida tão precoce? Aceitar a fatalidade era um desafio. O destino estava sendo agredido em pensamento por todos os que ali passavam.

Caminhei brevemente por entre as pessoas que transpiravam tristeza e desamparo. Os rostos exaustos me fizeram entender que, diante de armadilhas da vida, somos todos iguais. Homens, mulheres, crianças e idosos não se diferenciavam. O desolamento era o mesmo. Decidi que era hora de me afastar. Respeitava profunda e silenciosamente os sentimentos mistos que transpareciam naqueles rostos, incluindo em relação a minha presença. Flagrei alguns olhares enfurecidos em minha direção. Percebi que era intrusa e, mentalmente, desculpei-me pela invasão.

Pedidos singelos e controlados surgiram em diversos momentos. “Por favor, não registrem imagens. Não coloquem nos jornais e na televisão”, falou uma senhora, provavelmente avó, de maneira educada. Seu corpo trêmulo era amparado por outra mulher, que a segurava pelo braço. Cheguei a tempo de vê-la sair a passos lentos, com os óculos escuros escondendo lágrimas. Meus olhos envergonhados a acompanharam. Em minha cabeça, nada se comparava àquela dor.

Pouco depois, soube que o pai da menina chegaria a qualquer momento. A expectativa em relação ao fato era impossível de ser escondida. Pequenos movimentos eram feitos quando aparecia algum carro. A tensão pairava no ambiente. Olhares procuravam indícios do momento certo de posicionar as máquinas e acentuar o clima pesado.

Ao contrário do que afirmou Leminski, no poema “Dor Elegante”, um homem com dor não é muito mais elegante. O pai da menina caminhava de lado, sim, como se chegando atrasado, chegasse adiante. Mas ele não queria chegar adiante. Ele ansiava, e era nítido em seu transtorno, apenas adiar os últimos segundos de sua despedida. Era o adeus definitivo. A ausência eterna.

Em meio ao sofrimento paterno, flashes disparavam. Mais pedidos. “Por favor, não fotografem”, falou uma mulher, tentando convencer a imprensa a não fazer o seu trabalho. Ninguém a ouviu. Em minha cabeça, uma dúvida: seria esse mesmo o trabalho da imprensa? Diante desse questionamento e da consternação dos parentes, senti-me pequena. Era espectadora daquela trágica situação. E, também, alvo da ira de todos os que apoiavam um homem que chorava de maneira desesperada pela perda de sua pequena filha. Delicadamente, abaixei a câmera que estava em minhas mãos em sinal de respeito e desejei sair dali rapidamente, sabendo que não seria mais a mesma pessoa que entrou para cobrir um evento trágico. Para trás, ficaram a dor, o cemitério e a menina. Comigo, seguiriam os questionamentos e novos pontos de vista menos ingênuos acerca do mundo ao meu redor.

Paula Vigneron
Enviado por Paula Vigneron em 18/02/2014
Reeditado em 21/02/2014
Código do texto: T4696332
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