É mole, Chico?

Criança ainda, entrei pela primeira vez na Igreja de São Francisco, no largo do mesmo nome, no centro de São Paulo.

De mãos dadas com a minha avó eu fitava, de olhos grandes e atentos as imagens, a organização daquele espaço de fé, para mim novo. Mas tive medo daquele silêncio, das preces sussurradas pelos lábios de tantas fieis contritas.

Desde cedo me apaixonei pela figura histórica de São Francisco de Assis. De origem bastada, Francisco abandonou a riqueza para se dedicar aos mais humildes, com uma filosofia profundamente humanista e reformadora dos conceitos até então vigentes.

As ordens franciscana e dominicana são mendicantes e os seus fundadores, Francisco e Domingos, mostravam que era possível viver a pobreza, a verdade do Evangelho como tal, sem separar-se da Igreja. Essas ordens nasceram numa Europa medieval carregada de uma religiosidade severa, obviamente conservadora, em que se valorizava o pecado, a obediência e o medo do castigo eterno. A mesma Europa com as constantes aberrações das grandes fomes, epidemias, peste bubônica, mas, ao mesmo tempo, precursora da Modernidade, da Renascença e Portugal e Espanha se lançando ao pioneirismo na dominação de novos espaços.

Com a minha avó aprendi seriamente a respeitar os mais simples. A honradez era uma das primeiras palavras do seu vocabulário não necessariamente pronunciada, mas vivida.

A minha avó não falava de São Francisco, mas era notório o seu conhecimento daquela figura extraordinária, serena e alegre, atuante e renovadora.

Muitos anos depois de entrar pela primeira vez nessa igreja, de mãos dadas com a dona Noêmia, filha de imigrantes calabreses, tive o privilégio de ser colega de estudos de uma freira franciscana, a Irmã Laurina. Com ela aprendi muito e, principalmente, a ter uma amizade maior com o santo.

De tanta amizade, admiração, intimidade nos sentimentos e respeito, virou simplesmente “Chico”. E a gente se entende muito bem assim.

Mas, agora, depois de uma encarnação de mais de meio século, me pego preocupada.

Sempre achei o máximo a Oração de São Francisco. Já cantei aqueles versos, me arrepiei, divulguei, compilei algumas vezes, mas, confesso, não está fácil.

Como é que eu vou levar o amor quando me deparo com trocentos bandidos todos os dias por esse Brasil varonil?

Como vou perdoar quando alguém faz algum comentário ofensivo ao filho amado?

Como vou conseguir levar alguma verdade quando hoje errar brutalmente é tão corriqueiro e sem consequências? Para alguns é até bonito.

Como é que vou conseguir levar alguma luz a quem vive nas trevas e não ser chamada de “velha babaca, sem noção”?

E ainda: existem momentos que a gente precisa de consolo.

Como é que eu vou compreender aqueles milhares que teimam em usurpar dos outros alguma dignidade, o direito a ser feliz, a ter paz?

Mas eu também quero amar. E ser amada.

Do jeito que as coisas vão, Chico, tá difícil.

Mata-se por quase nada. Por um par de tênis. Pela camisa do time rival. Por uma manifestação de rua. Bate-se na professora. Xinga-se o pai e a mãe. Embebedam-se. Mentem. Agarram-se ao egoísmo supremo do uso abusivo das drogas. Roubam e se riem.

Eu me lembro de tudo o que a minha avó, os meus pais e professores ensinaram. Eles se dispuseram a fazer o mundo melhor através de nós. Incansavelmente.

Chico, eu te adoro. Já te esculpi até, com uma carinha muito simpática. Já pintei você e coloquei a tela no quarto da minha sogra quando ela lentamente se preparava para partir. Eu queria que você estivesse com ela. Eu te chamo prá sair comigo – e você vai - e está sempre no meu coração. Acompanha o meu filho na sua difícil jornada.

Mas do jeito que as coisas estão, eu te pergunto: é mole, Chico?

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 25/02/2014
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