BÍBLIA PAULISTA

Algo que me fascina na língua Portuguesa são as variações linguísticas e os sotaques diferentes, apesar de sermos todos brasileiros e educados, em nossa maioria, por meio de um só idioma: a língua portuguesa. Quer coisa mais interessante do que confrontar os sotaques cariocas, paulistas, mineiros, nordestinos e sulistas? Dizem que nós, capixabas de nascimento ou de coração, também temos uma fala diferenciada e marcante, mas como eu moro há 52 anos no Espírito Santo, eu não consigo perceber se essa afirmação é verídica.

Apesar do meu amor pelas particularidades da “última flor do Lácio, inculta e bela”, hoje eu leciono sobre assuntos voltados para as áreas de educação e de humanidades. Neste semestre fui escalada para ministrar “Estudos Sociais e Econômicos” para as três turmas do curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade Pitágoras de Linhares. Nossos primeiros contatos foram muito positivos, pois, além da simpatia dos alunos, neles percebi a disposição para cursar, seriamente, essa ciência e, profissionalmente, fazer diferença na sociedade.

Visando a preparar meus alunos para reflexões e análises críticas dos fenômenos sociais, econômicos e ambientais que impactam diretamente sobre a vida do ser humano, escolho sempre mostrar-lhes o quanto somos frágeis e microscópicos comparados a esse mundão de meu Deus. A seguir, abordo as teorias criacionistas e evolucionistas do homem, exatamente nesta ordem. Para tal, costumo perguntar quem são os alunos mais religiosos da sala e peço ajuda de alguém entre eles para recordar para os demais colegas a história da criação do mundo, segundo a bíblia.

Em uma das salas, um jovem de uns 18 anos, de nome William Forrrrrtes (sotaque de paulista, carregado de R), recém-chegado de São Paulo, atendeu ao meu pedido, veio à frente, e saiu-se com essa:

-Posso contarrrrr à minha moda, professora? Diante do meu aceno positivo, ele voltou-se para os colegas e começou sua narrativa:

- O trampo é o seguinte, de acordo com o livro de Gênesis, tão ligados? Então, Deus resolveu fazer as paradinhas todas: separou céu e terra, fez os bichos, as plantas e deu nome para tudo. Depois ele achou que tava faltando umas paradas, pegou uns barros e fez um boneco e deu o nome de Adão. Então, botou o bitelo para secar e ficou olhando firrrrrme pra ele. Achou que era melhor fazer uma “mina” pra ele. Meteu a mão nas costelas, arrancou uma e fez a Eva, tá ligada? Acenei positivamente a minha cabeça de novo e ele prosseguiu:

- Então, o trampo foi esse. Também tem a treta de Deus fazendo Jesus. Arregalei os olhos em sua direção, abri a boca estupefatamente e perguntei: “Deus fez Jesus na época da criação do paraíso, William?” Ele não se fez de rogado e defendeu sua tese:

- Fez sim! Jesus não é filho de Deus? Quem fez Jesus? Deus, claro!! Jesus já morava com o pai dele há um tempão, tá ligada? Depois é que ele mandou o filho dele aqui para ser esculachado pelos homens, mas Jesus morava com Deus há um tempão, tá ligada?

Diante do riso geral da turma, ele finalizou:

- Tão rindo de quê, meu? Vou conferir lá em casa. Só se a bíblia paulista for diferente da de vocês.

NORMA ASTRÉA
Enviado por NORMA ASTRÉA em 27/02/2014
Reeditado em 28/02/2014
Código do texto: T4708524
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