Aquela mulher

Impossível esquecê-la. Foi apenas de passagem que eu a vi. Não sei seu nome. Idade? Uns 30 e poucos, quem sabe.

Sempre fui fascinada pelo ser mulher. O feminino sente profundamente a arte de enxergar mais além, de lapidar sonhos, de construir relações. A mulher busca a arte no infinito, nas cores e nas suas ausências.

Jovem ainda eu me sentia fascinada pelas novas buscas, pelo feminismo, pela mudança dos paradigmas. Quando lia Simone de Beauvoir eu me sentia na plenitude da existência, sabendo que era possível ter o domínio da palavra, conhecer as estradas através de cada passo dado, muitas vezes com imprecisão e angústias. Lendo Beauvoir eu lia “esperança”.

Eu ia me sentindo capaz de ser e de estar. Não ser sombra. Ser dona. Mesmo calada para não me sentir desgastada na voz. Mas sendo dona. E pronto.

E fui buscar as expressões, tentar os rostos, os gestos, os sinais. E tenho o feminino como tema recorrente das peças de escultura que elaboro: uma mãe da Praça de Maio, outra que acalenta o seu filho pequeno. Tem também aquela sentada num banco de praça, ladeada por duas crianças. A outra gestando, calada e na sua sublime solidão. Tem a que abraça o marido com meiguice... e o filho à espera de ver o sol.

Ser mulher é mágico. Infinito. Ensolarado.

Mas a lua iluminando tempestades pode chegar e surpreender. Para baixo.

Mas eu jamais me esqueci DAQUELA mulher.

Eu caminhava com pressa e determinação para as aulas da noite. Saída da estação Belém do metrô, lá ia eu lecionar para adultos humildes da zona leste. Eram operários, trabalhadores da ELEROPAULO, faxineiras, cozinheiras...

Eu ia feliz, consciente da minha missão e que o meu trabalho poderia transformar algumas vidas. Esse sentimento era o meu oxigênio, que me fazia levantar cedo ainda com o corpo cansado das aulas do dia anterior.

E no caminho eu vi aquela mulher. De uma casa, próxima à padaria onde eu diariamente comprava pão, eu ouvia um barulho exagerado, confuso, chamativo. Era ela.

Munida de uma vassoura de pelo, a mulher quebrava todas as coisas que haviam na casa, as vidraças, surrava com decisão a porta de entrada. Ela não se cansava. Não ficou um vidro intacto. Os cacos invadiam sem precisão parte da calçada e os transeuntes não falaram nada.

No Belém, a mulher quebrava tudo.

Pobre mulher!! Se estava cansada de agressões, verbais ou não, se fora traída ou abandonada pelo marido. Se foi humilhada, xingada... não sei.

Mas ela pode ter sonhado. Sonhado muito. Sonhado em subir as escadas da vida com a pessoa amada e quando chegou ao último degrau, o mais esperado, o companheiro largou-lhe o braço e lançou-a pelo mundo abaixo. E os sonhos se esvaíram qual nuvem negra e ela percebeu que teria que subir novamente todos os degraus, com todos os ossos quebrados em inúmeras partes, pele lanhada, com hematomas exuberantes. Olhos imensos de choro convulsivo e duradouro. E teve que começar a subir a escadaria sozinha, sabedora da sua solidão.

Aquela mulher!

Será que se chamava Eva? Antônia? Dirce? Luísa?

Nem imagino.

Mas aquela mulher, possivelmente, estava sendo honesta. Quem sabe pela primeira vez estava dizendo ao mundo a que veio, deixando de ser sombra, obscura, mórbida. Era a forma, quem sabe a única encontrada, para dizer que tinha vontades, direitos, desejos e uma insaciável fome de beleza.

Parabéns a você, que, para não morrer de uma vez, resolveu quebrar parte do seu mundo para deixar nascer o novo.

E que esse novo seja colorido, criativo e com as realizações que todas as mulheres merecem ter.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 09/03/2014
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