Morte Destilada

Havia ouvido falar de artistas que pintam com as próprias fezes imagens santas e depois as vedem por uma fortuna em leilões . Foi ai que pensei: se eles conseguem eu também posso . Mas não o faria com fezes , seria mais convencional . Pensei em tinta spray , imaginei guaxe , supus a possibilidade de trabalhar com borra de café , maquiagem feminina ...licor ? Genial , licor ! Licor seria bom , porque se eu desistisse de tudo poderia beber para esquecer os prejuízos do investimento . Dei a partida no velho Ford e segui na direção do centro . Era uma manha fria e cinzenta , seria a manha em que um novo artista , um revolucionário surgiria para mudar todos os padrões da arte. Antes de sair contei a Amanda sobre minha ideia .

- Ficaremos ricos , você vai ver . Se pagam por merda pagaram por algo que eles podem lamber e ficar chapados .

Amanda estava envolta de cobertores . Afanhei sua cabeça morena e pedi alguns trocados para a tela , os pinceis e todo o resto .

- Tenho alguma coisa na minha bolsa .

Foi o que resmungou Amanda . Naqueles dias como em muitos outros minha situação não era das melhores . Não vendia nenhum conto e também não queria arranjar um emprego numa fabrica ou lavando carros . Logo era minha querida que mantinha a casa com seu trabalho de secretaria. Peguei sua bolsa na mesinha de cabeceira e lhe entreguei . Ela chafurdou ali dentro por alguns segundos até que pediu que ligasse a luz .Cobriu os olhos como um vampiro . Tirou os cabelos escuros da frente do rosto e revelou seus olhos inchados e rosto amassado com a marca do travesseiro nele .

- O que vai fazer com o dinheiro , Oliver ?

Expliquei tudo de novo a ela .

- Quem pinta imagens santas com merda ?

- Um artista rico da TV .

- E você acha que pode fazer dinheiro com isso ?

- Não sei , mas vale apena tentar .

Entrei numa papelaria e um sujeito veio me atender . Vestia seu uniforme azul de gola polo e cabelos com gel .

- Posso ajudar , senhor ?

No seu peito um crachá escrito com canetinha dizia que se chamava Messias .

- Então , seu nome é Messias ?

Fez que sim com a cabeça . Achei seu nome um tanto Reconfortante . Messias , o salvador , quem sabe não me tire desse lago de fogo ?

- Preciso de tela , pincel , potinhos onde possa encher de licor e mergulhar os pinceis nele .

Ele não entendeu muito bem mas tentou ajudar . Me mostrou cartolinas brancas e pinceis escolares . Disse que não era aquilo . Uma mulher remexia a estante de cadernos com seu menininho . Era uma loirona bunduda com seus cinquenta anos . Seu garotinho não tinha mais que cinco ou seis anos . Não consegui tirar os olhos do seu rabo e não entendi nada do que o simpático atendente de gel no cabelo falava quando me mostrava papel fotográfico e caixas de lápis coloridos . Não sei se ela usava calcinha, porque em sua calça justa não se via marca alguma , era como duas melancias envelopadas em jeans azul marinho .

- ...em que escola seu filho estuda , senhor ?

Falou o atendente empurrando o papel fotográfico no meu rosto .

- Filho ?

- Isso , seu filho . Essas coisas são para seu filho , certo ?

Havia um equivoco ali . O homem realmente não tinha entendido nada , e não quis explicar a ele sobre as imagens santas e os leilões .

- Em que escola o seu estuda ?

Perguntei , ainda dando umas olhadas no rabão da mulher , que agora se abaixava para mostrar ao menininho os adesivos do caderno .

- …e nessa escola que ele estuda .

- Oh , claro , exatamente nessa que o meu esta .

- Que coincidência ! Então acredito que esse material vai lhe servir ..

- Escuta aqui , não vou querer nada disso , não é nada disso que quero .

- Mas...

- Esquece , to vendo que vocês não tem o que eu quero . Meu filho é um artista , ele precisa de coisas finas e boas que justifiquem seu talento natural e espontâneo .

Dei de costas para o atendente e segui pelo centro buscando o que queria . O problema e que não sabia o que queria , nunca havia pintado nada , Conforme avançava a esperança de conseguir uma tela e um punhado de pinceis esvaiam . Diante da situação senti que de duas uma : a maldita cidade armava um complô na intenção de não deixar seu filho prodigo avançar na vida ; ou o lugar era um antro sem cultura onde todos julgam a novela das nove uma obra prima da sétima arte . ( sétima? ) .As onze da manha me sentei num dos bancos da rodoviária . De ambos os lados cercado por indigentes pulguentos cheirando a urina . Eles riam e bebiam e um casal até se atracava ali e ninguém fazia nada . Talvez porque ver os dois ali era como ver dois cachorros fodendo , e ninguém atrapalha quando dois cachorros fodem em frente a uma igreja porque consideram um ato puro de amor e toda essa paçoca. O pessoal passava , olhava e seguiam suas vidas indo de lá para cá . Pensei que agiam assim porque a maioria considera esses tipos animais expurgados do inferno e vagabundos sem cultura . Pilantras . Mas não era bem assim , claro , como em toda comunidade , ali estavam aproveitadores se usando da nobreza de alguns poucos . E sim , a nobreza entre esses homens e mulheres que vestem trapos escuros sujos e sorrisos banguelos . Depois de alguns minutos sentado ali entre eles , os indigentes , me foram oferecidos sucessivos tragos de uma bebida quente e forte . A cada gole mais e mais suor escorria pela minha testa , então um deles começou a cantarolar uma melodia bonita sem letra e as vezes o fazia com o rosto bem colado ao meu e de sua boca vinha o cheiro da morte destilada . O da melodia se chamava Lucas , parecia um bom sujeito sem sorte na vida . Seus olhos eram escuros e chorões , a pela queimada pelo sol com uma grossa camada e sujeira a lhe cobria os cabelos e a barba longa . De baixo dos trapos e de toda porcalheira havia um rapaz de vinte e quatro anos , com quem dividi minha ideia de pintar com licores de cores diferentes .

- E tem esse cara que pinta imagens santas com fezes . É algo nojento que profissionais andam chamando de arte !

Lucas deu um ultimo trago no litro plástico .

- Estamos sem loucura aqui .

Disse ele , se referindo a bebida quente e forte . Entreguei a ele a grana que eu tinha nos bolsos .

- Faça o seu melhor e nos traga muito disso .

Falei . E ele se foi , capenga , puxando as calças para cima e dando um novo laço no barbante que usava com cinta . Eu mesmo estava muito bêbado e achei por melhor permanecer onde estava . Naquele momento eramos um bando de oito pessoas isoladas num canto ; solitários distante de todos cantando e gritando e sorrindo e disputando pedaços de pães duros com os fieis animais , os lobos vira latas com pelos repletos de nós e orelhas caídas . Uma pequena discussão começou não sei bem em que momento , mas acho que foi quando um dos machos deu em cima de uma fêmea comprometida . Saquei que se tratava da mais desejada do bando . Tinha olhos claros e cabelos vermelhos alaranjados . Provavelmente haviam sardas em seu rosto coberto por poeira e terra e deus sabe mais o que . Eu mesmo tinha me apaixonado por ela depois de ouvi-la filando uns trocados de um passageiro de tênis e paleto . A voz era doce , os movimentos lentos . Seu palavreado carregado da gíria malandra das ruas . A todo momento se olhava num pedaço de espelho envolto em fita adesiva para não cortar as mãos ; Vaidosa de unhas pintadas de preto ; fazia uso da mesma moda de seus companheiros :trapos de cores escuras com aparência de coador de café usado . Troquei duas palavras com ela , um oi e um até logo quando me despedi depois de terminarmos três garrafas da bebida forte e quente que Lucas nos trouxe com o dinheiro de Amanda , a doce e trabalhadora Amanda que me sustentava enquanto nada dava certo para mim . Em certo momento me convenci de que poderia viver entre eles , quando o destilado fez efeito pensei : porque não dividirmos nossas pulgas , posso viver assim , eles riem a todo momento largados em qualquer lugar ...Mas esse foi um pensamento mesquinho meu , porque a vida de Lucas e seu bando não era mais fácil que a minha . Nunca é fácil viver . Acabei pegando um ônibus na volta para casa , deixei o carro estacionado em algum lugar , mas não estava nem ai e cai duro na cama de cansaço . Pensei , que se dane a pintura , vou escrever sobre Lucas e essa gente . Sobre a garota linda e empoeirada assim como uma obra romana esquecida num museu. E aqui esta .

13/03/2014

09H46M

Cleber Inacio
Enviado por Cleber Inacio em 13/03/2014
Código do texto: T4726776
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