Gula

Sempre coexisti com meus excessos. Sou excessivo, admito. Tudo em mim, de mim e para mim é excesso e por isso, me perco e sempre acabo por me encontrar, no fim, excessivamente só entre tantas extravagâncias. Externamente, o que denota esses excessos, são as gordurinhas que teimam em ressaltar a todos a minha glutonice. Por dentro, um mar de desejo e de informação, de tantas das minhas variantes que mantê-lo represado, às vezes consome toda a minha vontade. Quando um desses diques se rompe, é um Deus nos acuda. Se eu bebo, não há o que me baste, se acendo um cigarro, as chaminés de Londres me são pares, se amo, aí me encontro próximo o suficiente do abismo para num único passo me perder.

E eu preciso escrever. Não é uma necessidade que possa abstrair ou relegar a outro momento, simplesmente preciso fazê-lo quando a vontade me vem. Sou escravo das minhas letras e, se não as atendo, me vejo tomado de assalto por elas e acabo largando esse mundo por horas enquanto bailam as letras, na minha mente consciente. Sou um pobre mendigo, menos que isso ainda, se não tenho minhas letras. É um excesso que não me é pernicioso, quase tudo o mais me envolve de maneira próxima da loucura. No papel posso ser quem eu quiser, fazer as mais imponentes loucuras sem consequências, ser amado e amar loucamente e extrair de dentro de mim minha essência vulgar e indômita. Sou minha própria puta! No papel, sou Dorian Gray, um imortal e imutável retrato de mim mesmo, que se move entre as sombras e luzes sem se macular por nada que cruze meu caminho.

Dentre todos os pecados capitais, hoje compreendo que o que me cabe, por uma questão metafísica ou pela simples compulsão, é a gula. Tudo o que quero tem de ser muito, preciso que seja muito, não me sacio com o que é pouco. Antes me conformo em não ter algo, do que tê-lo em doses homeopáticas. Não sei o que fazer com o que é pouco. Pareço um viciado quando me confronto com algo que me desperta os sentidos, preciso ter desesperadamente e em quantidade. Faço loucuras pra conseguir mais e nunca, nunca mesmo, estou satisfeito. Talvez por isso eu leia tanto, para que as histórias que eu amo se incorporem em mim, na síntese mais perfeita da simbiose que pretendo com tudo o que me faz feliz. Passo a ser dono das minhas leituras e elas fluem de dentro pra fora com a mesma facilidade com a qual entraram em mim, mas sem nunca me deixar. Aliás, apesar de pelo caminho ter deixado muita coisas pra trás e criado muita confusão com minha ímpar condição de insanidade apaixonada, tudo o que fiz e que senti continua aqui, dentro de mim e me pertence, por que são, todas essas coisas, o combustível da minha poesia, da minha retórica, da prosa dos meus dias.

Ser excessivo afasta as pessoas que amo, em algum momento, de mim. As que me amam, aprendem com o tempo que eu sou assim, cheio de infinitas possibilidades e alguns até conseguem me manter sob controle, por um tempo...

Clarice Lispector teria escrito que não há sinônimos que possam se rivalizar com uma tão ímpar personalidade, que essa é a marca do incomum. E que por isso, o incomum não constitui uma classe, por não ter pares. Ela era incomum, no seu genial cotidianismo. Era capaz de extrair do comum uma miríade de variações inusitadas do real e isso era o que lhe fazia incomum. Queria poder ter pelo menos cruzado na rua com ela, queria ter casado e com ela tido livros. Ela é um dos meus amores, Maria Bethânia é outro. Quando ouço suas músicas, mergulho fundo dentro de mim e bebo da fonte do meu próprio prazer, do minha solidão, das minhas angústias brota a arte e sou feliz e completo. Uma completude, que só que ama a música em variados graus consegue compreender. Não que não me falte a presença do outro, o outro é sempre importante, tanto que quando me apaixono, imediatamente desejo mostrar-me completamente e acabo transparente e enlouquecidamente dependente da presença do outro. Mas o outro eventualmente se vai e a música sempre está, a música é. Enquanto os acordes tocam, eu posso tudo, porque tudo eu sou e meus excessos são tão suaves que a próxima música os ignora e como um vendaval, vem, sacode tudo e vai embora. E eu não fico só, porque a música nunca se vai realmente. A música, como os outros excessos sempre deixa um sabor doce, diferente do resto, cada sensação despertada, ali, sempre presente.

Li certa vez a história de uma moça que como eu, sentia muito, mas que também como eu não sabia lidar direito com seus sentimentos. Tita cozinhava para extravasar, e cozinhava tanto e com tanto ardor, que suas sensações iam de si para seus pratos, pungiam suas receitas de tal modo que tocavam quem as provava e multiplicavam os seus sentimentos, que transbordavam dela nos outros. Acho que por isso me dediquei a cozinhar. E quando cozinho, costumo me sentir como uma Tita, que despeja em suas receitas um ingrediente secreto, que não possui dose certa e nem é tangível, mas transforma o sabor em sentimento, qualquer que seja o sentimento que me envolva enquanto cozinho. Quando cozinho, me multiplico e já não sou compulsivo, porque me divido e na divisão não há excesso. Amor e cozinha sempre combinam, o amor dá fome e a cozinha sacia qualquer desejo. Alguém como eu, cheio de vertentes e que transborda com tanta facilidade precisa cozinhar pra liberar parte do que é, do que tem muito, do que lhe escapa. Meu coração sangra às vezes por eu ser tão incontrolavelmente descontrolado, mas quando cozinho eu sou os meus sabores, cada tempero é uma parte de mim que se dosa perfeitamente para um resultado que, às vezes, me surpreende. Não que eu não espere pelo indizível, mas eventualmente os rumos que tomo são tão alheios a minha expectativa que o sabor de uma receita torna-se uma linda novidade. Sempre chego a conclusão de que, se minha vida for em algum momento análoga ao meu cozinhar, em algum momento minhas loucuras serão o motivo de uma grata surpresa. E cozinho, ouço, escrevo, leio e sou, meus excessos extravasam e me dão muito o que fazer enquanto espero pelo novo.

Mah Mendonça
Enviado por Mah Mendonça em 14/03/2014
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