Aquele disco de vinil

Num silêncio profundamente denso, a atmosfera nostálgica banhava a alma da minha avó.

Sentada no seu pufe verde, ela ouvia algumas músicas italianas no sobrado do Cambuci.

Com linhas coloridas entrelaçadas nos dedos, a outra mão dava vida à sua agulha de crochê de cabo azul.

A minha avó não conversava naquele momento: o disco de vinil rodopiava calmamente sob a sensível agulha da vitrola Telesparker, de madeira brilhante após receber uma camada generosa de Lustra-móveis.

Enquanto eu aplicava o produto com um pano seco, também calada, eu observava a intensidade do silêncio da dona Noêmia.

Eu percebia que ela sentimentalmente se transportava para os primeiros anos nas suas Minas Gerais, tempos da recém-chegada dos italianos ao Brasil. Foi da Calábria a raiz dos seus antepassados, aquele pedaço de terra onde os mais simples não tinham onde colocar os pés. Muito menos os sonhos.

Resolveram então idealizar um literalmente Novo Mundo, onde haveria terra fértil e dali sairia, certamente, a sua casa. Numa Itália convulsiva e faminta, a emigração seria o caminho único para tantos deserdados. E o retorno praticamente seria uma utopia.

Nascida no anoitecer do século XIX, a dona Noêmia tinha o trabalho nas veias, essência herdada daqueles calabrezes que atravessaram o oceano com a certeza de que prosperariam com a plantação do café nas Minas Gerais. E a ideia de prosperidade, nesse caso, seria ter trabalho, casa, comida , dignidade e alguma possibilidade de estudo para os futuros herdeiros. Herdeiros? Sim: da honra, da lisura, da sabedoria.

E ouvia atentamente “Torna a Sorrento”, “Arrivederci, Roma”, “Santa Lucia”. Cantarolava baixo “Mamma, soi tanto felice...”

Eu percebia na minha avó, enquanto crochetava e ouvia as canções, um respeito profundo ao passado, à história de pobreza da família, as mudanças que, lentas, teimaram em acontecer. E não exibia tristeza propriamente, mas amor por tudo aquilo que foi.

Inúmeras saudades mudas ela tinha cravada na alma. Dos que já haviam partido, da sua pequena plantação, dos tempos em que lia várias vezes um pedaço de jornal que vinha embrulhando alguma mercadoria trazida de Poços de Caldas pelas mãos do meu avô. Lia as notícias velhas e repetidas vezes sobre o balcão da vendinha que jamais conheci.

Vez ou outra ela contava casos dos irmãos, do seu trabalho em fazer pães, biscoitos, queijo, do tanto que fazia para ajudar na criação dos filhos.

O tempo em que viveu se entrelaçou com as duas guerras, com a mudança para São Paulo, fixando-se na Cantareira, com o trabalho numa pensão, com a vitoriosa alegria de enxergar a filha estudando na Caetano de Campos e o outro filho entrar na USP em primeiro lugar no curso de Farmácia.

Ela crochetava cuidadosamente naquele canto da sala nos anos setenta e ouvia “O sole mio”.

O som saía da vitrola direto para aqueles ouvidos tão humanos e arranhados pelo tempo.

E hoje, quando toco no teclado essa canção, sinto pelo passado uma saudade doída, com um desejo exacerbado de retorno àquele tempo . Tempo em que a sabedoria era garantida e sem meias palavras. Apenas existindo e cantarolando: “mamma, soi tanto felice”.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 14/03/2014
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