Realismo

Olá meus caros 23 fiéis leitores e demais 36 de quando em vez. A gente vive num estado de surrealismo constante. Salvador Dali era amador perto da gente. Nosso surrealismo é atávico, uma defesa psicológica de nossa espécia ante a finitude de nosso corpo físico.

Ontem fui visitar minha tia no hospital. Ela é irmã do meu pai. Tem 78 anos, entretanto está inteira, lúcida, ativa. Ou melhor, estava, até bem pouco. Foi lá para se operar dos intestinos. Averiguando bem a situação dela (estou encurtando bastante a história), descobriram que ela tem um tumor agressivo no cérebro, já em seu estágio final. Final para o tumor e para ela.

Ela ainda não sabe. Ou não quer saber. Ainda fala que vai operar os intestinos e reclama por estar demorando a decisão médica de operá-la. Os médicos disseram que isso faz parte da demência parcial que o tumor provoca. A gente percebe melhor isso quando olha TV com ela, durante as visitas. Estava, ontem à tarde, dando um programa na Record, onde uns gordinhos fazem uma competição para perder peso, coisa assim. Daqui há pouco a tia comenta:

- Eles estão aqui no hospital, passam por aqui pela tarde para fazer exames.

A tia está entrando em estágio avançado de surrealismo, mais que aquele normal da nossa espécie.

Uma péssima sensação estar ali, com uma pessoa que fez parte da sua vida, que sempre foi muito legal contigo e que você sabe que está condenada. E ela não sabe. São os últimos dias da tia, de sua vida, de sua lucidez. A lucidez se irá em breve e ela deve entrar em coma, dizem os médicos. Depois...

Para todos é uma coisa dura de enfrentar essa realidade. Pra ela está sendo torturante, pois ela ainda mantém a lucidez clara de estar ali há 15 dias, com muito desconforto, com dores renitentes. Reclama dos exames, detesta fazer a tal de tomografia computadorizada (Ou seria ressonância magnética? Nem lembro agora!) devido ao barulho que o equipamento faz. Não sabe que está condenada, visto que isso não disseram pra ela. Só sobre o tumor que, aparentemente, não quis ou não pôde entender.

Três primas minhas, mais chegadas a tia, se revezem pra ficar no quarto, um dia para cada uma. Algumas noites fica uma empregada, antiga na família. Um drama para todos, uma situação extenuante de puro realismo.

Surrealismo. A gente vive como se nunca fosse morrer. Só quando a morte bate à nossa porta, vemos o que essa vida é de fato, para além de todo esse surrealismo que vivemos. Em todas as pessoas que vi passarem por isso que a tia está passando, percebi o drama tétrico que isso é. A realidade da vida é dura, está longe, confinada nos hospitais, presídios, manicômios, presídios, asilos, orfanatos, nas guerras, nas favelas, etc. Esse emaranhado de felicidade e perfeição em que vivemos é surrealismo puro. É uma parte da vida que desejamos ardente e artificialmente sobrepor à realidade como se ela fosse. Mas não é: é apenas uma parte dela, uma parte boa, mas parte, não todo.

Saí dali com a Louise e fui numa livraria dum shopping. Antes, tomei uns chopps. Comprei um livro enorme do Dali, com suas pinturas impressas em grande formato. Precisava fugir um pouco desse realismo.

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Era isso pessoal. Toda sexta, às 17h19min, estarei aqui no RL com uma nova crônica. Abraço a todos.

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(Não sei porque eu ainda coloco o link desse blog, eu perdi a senha e não atualizo ele há séculos. Até eu descobrir o motivo pelo qual continuo divulgando esse link, vou mantê-lo. Na dúvida, não ultrapasse, né. Em 2014 talvez eu dê um jeito nisso... Mas acho que continuarei seguindo o conselho que a Giustina deu num comentário em 18 de outubro.)

Antônio Bacamarte
Enviado por Antônio Bacamarte em 15/03/2014
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