A Dança das Cadeiras

Quase todos os dias, meu amigo Pedro Salgueiro, costuma sentar-se num barzinho de pé-de-calçada por detrás da pracinha da Gentilândia. Os amigos sempre o convidam para ir a outros locais, outros bares, restaurantes, cafés, mas nada: se quiserem realmente encontrá-lo, tem de ser ali!

Senta-se ao lado do meio-fio quase abaixo de uma castanholeira. Encolhe o tronco, entrelaça os dedos sobre a barriga, cruza as chinelas chocalhando os joelhos nus, e põe-se a conversar uma conversa arrastada, sem fim. Interrompe-se apenas quando ergue o braço a empunhar um copo de cerveja gelada ou para dentear o espeto de tripa assada na brasa.

Mas essa não é a sua única mania. Há outra, mais estranha: numa roda de amigos, é sempre o último a levantar-se para ir embora. Sabe ele, e disso tem a convicção, que aqueles que levantam e se vão, viram logo candidatos à falação, à fofoca e à célebre outorga de apelidos pelos demais. Assim, pode raiar o dia, mas ele não sai dali, nem a pau, antes que o último dos amigos se levante e se vá.

Um dia, no auge de sua obsessão, cismou que ser o último a sair da mesa não era o suficiente. Poderia haver conhecidos em outras mesas, na esquina, no balcão... O próprio garçom que o atendia poderia falar dele às costas! Teimou: ele não sairia dali enquanto todos não se fossem e se certificasse de que o dono do bar colocara os cadeados e os ferrolhos... Mas, e se eles voltassem? E se o estivessem esperando por trás dos muros, nas esquinas, a rirem-se dele? Não, ele não levantaria dali, não levantaria mesmo...

Assim, passaram-se os dias. Ele, veja só, começou até a ser tratado como um móvel do bar: uma cadeira, uma prateleira, uma pia, um cinzeiro, um poste...

Vez ou outra, os solitários do mundo ainda lhe pedem licença para sentar em sua companhia. Ele, naturalmente, desfia sua conversa, conta histórias de sua Tamboril, e, mais raramente, arrisca piadas sem gargalhadeados. Mas, ao ser questionado sobre quando se irá, responde taxativo: “Só depois de você...”

Com o tempo, mudam as caras; outras chegam; aqueloutras partem para nunca mais, mas ele não diminui a guarda, sempre com a nítida impressão de que estão a espreitá-lo, a esperar a sua lograda partida. Ri-se só!

Imagine, criativo leitor, que 50, 100, 200 anos se passam e, naquela mesinha de plástico próximo à calçada, Pedro Salgueiro ainda se mantém alerta.

Ele está mais magro, mais careca — ou a cabeça maior, não se sabe — não há mais tripas e nem paneladas — o garçom foi-se; o dono do bar também —, o copo cheio de cinzas e areias, as chinelas cruzadas debaixo da mesa, os dedos sobrepostos sobre as costelas magras, a camisa do time favorito descolorida pela chuva-sol, e Pedro não sai dali, nem a pau!

Daí, em meio à cortina de fumaça e poeira ferruginosa, um sujeito aparece. Pedro pensa: fazia tempo que ninguém lhe ocupava o assento à mesa...

Vê, então, um indivíduo comprido, esverdeado, longos pares de antenas, olhos negros, a boca mais lhe parecendo um umbigo. Com seus poucos dedos, o estranho faz gestos leves, amistosos. Pedro Salgueiro olha para ele e, com a cabeça, dá-lhe assentimento: “Pode sentar, seu cabra...”

Verboso, o indivíduo põe-se a falar sobre o universo, o céu, as estrelas, a viagem cansativa... Diz que lamentava a Terra ter sido destruída pelas guerras, pela violência, pela ambição, pela falta de coisa melhor para fazer, e que, confessa, estranhou ainda encontrar um único exemplar vivo dessa espécie por ali, já que a humanidade inteira sucumbira havia tempos.

Sereno, rodando com os dedos o copo na mesa, Pedro Salgueiro discorre sobre a sua pequena cidade de origem que, pelo relato, parece ao estrangeiro tratar-se da capital mundial da Terra. Fala das pessoas, de causos, do açude Carão, da reconhecida coragem do General Sampaio e das boas partidas de futebol, de longe a arte maior criada pelo homem!

O estrangeiro, ávido, a tudo ouve e registra. Entusiasmado, percebe estar diante de um grande achado científico e antropológico. O convida para partir com ele, explorar outras galáxias, relatar as experiências daquele mundinho a outros povos mais avançados. Pedro olha para o fundo árido do copo e, molhando o lábio seco com a língua, concorda. Antes, porém, solta um meio-sorriso maledicente, sacode a cabeça mergulhada entre os ombros, e diz, apontando à frente: “Vai, tu, primeiro, gafanhoto!”

Pedro Salgueiro nasceu em Tamboril, Ceará. Contista, autor de O Peso do Morto, O Espantalho, Brincar com Armas e Dos Valores do Inimigo. É um dos cronistas convidados pelo Caderno Vida & Arte do O POVO. O texto é uma alusão a sua personagem em Fronteira (CAOS Portátil nº 2 pg 40)

Raymundo Netto é escritor, autor do romance Um Conto no Passado: cadeiras na calçada, membro do Conselho Editorial de CAOS Portátil – um almanaque de contos. Contato: raimundo.netto@globo.com

Fortaleza, Ceará, 15 de março de 2007 (Crônica publicada no Caderno Vida & Arte do Jornal O POVO)

Raymundo Netto
Enviado por Raymundo Netto em 03/05/2007
Código do texto: T473117