“Um bom samba é uma forma de oração”.

Silenciosamente, à distância, ele foi entrando no meu coração. Num lado calmo, paciente e atento do coração, ele vai ficar ali quietinho, para sempre. Uma pessoa que eu jamais conheceria e que foi espalhando uma paz segura de quem sabe viver sem atropelos, deixando as mágoas para serem expostas ao vento. Naquele vento de outono, com as folhas das árvores se deixando levar para qualquer lugar para que o novo possa nascer.

Sempre achei deslumbrante a vida de quem pode tocar um instrumento, fazer um samba sem olhares repreensivos em nome da boa moral.

Eu não me lembro quando e como foi que me apaixonei pelo “Samba do Arnesto” . De tanto ouvir “o Trem das Onze”, fui procurando outras e outras músicas do nosso Adoniran. E cantarolava “Saudosa Maloca, “o Casamento do Moacir”. Mas “Iracema” eu achava triste demais, com a letra preenchida por uma história de amor encerrada pelo atropelamento numa São Paulo que se urbanizava rapidamente e as inovações fascinavam e amedrontavam. Era tudo ao mesmo tempo acontecendo naquela efervescente avenida São João.

No final dos anos 70 muito se falava do Noel, do Adoniran e de vários outros interessantes compositores e artistas que registraram de forma extraordinária o ser brasileiro, as nuances da vida, suas dificuldades e alegrias. Era a tentativa de respirarmos algum alento numa época de promessa de entorpecimento intelectual da sociedade vinda do lado de cima.

E quando descobri como um samba do Adoniran foi feito me surpreendi com o humanismo intenso na história do protagonista daquela música, o sr. Ernesto Paulella.

Filho de imigrantes italianos, desde muito cedo teve que trabalha duro, inclusive vendendo chuchu. Correto, íntegro, foi músico e sempre muito dedicado ao trabalho.

Pessoas importantes para mim, que vêm passear no meu imaginário pela conduta impecável e lisura de caráter passam a caminhar comigo na redação da minha história. E o Arnesto é uma dessas pessoas .

Trabalhou tanto para sustentar a família com dignidade que os estudos ficaram para depois.

Fiquei maravilhada quando soube que ele só conseguiu se graduar em Direito aos 60 anos de idade. E isso quatro décadas atrás, quando aposentadoria significava ficar em casa, de pijama, ouvindo rádio e descansando à espera do além!

E até os noventa anos ele advogou. É seguro que podemos pensar que exerceu a profissão com zelo, responsabilidade e sempre pronto para agir conforme o peso da justiça e jamais atendendo a interesses escusos.

E agora planejo o possível tempo que me resta tendo o Arnesto como uma das mais saudáveis referências.

Aposentada, continuo trabalhando. Entrei numa escola de música e estou me familiarizando com alguns instrumentos. Iniciei mais um curso, de quatro anos de duração. E ontem, durante a aula, interessantíssima, naquele misto e ciência e filosofia eu subtraí alguns breves segundos daquela exposição e pensei:

“vou fazer como o Arnesto: começando esse novo curso agora, vou me formar com sessenta. E então vou trabalhar até os noventa... como o Arnesto”. E voltei a fazer as minhas anotações.

Tive a maior de todas as certezas: o Arnesto entrou na minha alma!

Em fevereiro, o Arnesto partiu, beirando um século de existência.

Descanse mesmo. o Sr. foi símbolo de um tempo de amor ao trabalho e à responsabilidade, da palavra de honra, do respeito ao próximo. Do tempo do valor à vergonha na cara.

E aproveite um bocadinho do tempo para cantar com Adoniran.

O Sr. mereceu, sim, um samba! Foi felizmente imortalizado por outro imortal da nossa paulicéia. Vale lembrar que Vinícius acertadamente dizia: “um bom samba é uma forma de oração”.

Então, a bênção Vinícius de Moraes. A bênção, Adoniran; a bênção Arnesto.

Siga em paz e colha os bons frutos de uma história muito bem vivida na dignidade, no trabalho, com direito a um samba do nosso grande poeta Adoniran.

E olhe: isso não é prá qualquer um!

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 23/03/2014
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