(O título inspirado em ‘Admirável Gado Novo’ – de Zé Ramalho)
 
 


VIDA DE GADO
 
O que começo a relatar aqui é um fato verídico. Gosto de observar os fatos e analisar o comportamento das pessoas. Não sou nenhum expert nisso, mas é interessante como as pessoas se deixam levar pelos acontecimentos, sem pensar, sendo fácil de serem direcionados, ou tangidos como gado; quero deixar claro aqui que não me excluo dessa possibilidade.
 
Há poucos dias aconteceu um fato interessante, em frente à loja. Eu estava distraído, cuidando de meu serviço, quando ouço o som de uma batida de carro e, alguns segundos depois, o som de vidro quebrando. Chego no momento que uma senhora desce do carro, viajava como passageira, com um capacete na mão e o corpo todo coberto de vidro e algum sangramento por corte superficial nos braços. Dizia com a máxima calma possível: “Pra que isso, rapaz? Foi um acidente, não precisa ficar nervoso desse jeito. A gente paga qualquer problema na moto”. O acidente em questão se deu assim: O fusca 68, descia pela rua e precisava parar ao semáforo com alguns carros à sua frente, perdeu os freios e pra não bater na traseira de um corolla, o motorista resolveu tirar pra direita, em direção ao ponto de ônibus. Mas uma moto querendo passar na frente transitava pela direita, pela parada de ônibus, tentando ganhar a dianteira dos carros. Não deu outra. O fusca parou pela batida na moto, jogando ao chão moto e motoqueiro que, nervoso, jogou o capacete em direção ao fusca. O motorista permanecia quieto dentro do carro. Demorou alguns segundos, a reclamação da ocupante que saíra do carro, pra passageira do banco traseiro começar a passar mal, gritando de desespero. Uma funcionária que trabalha comigo disse: “Cuida primeiro de sua mãe que está passando mal”. Ela foi tirada do carro e colocada sentada em uma cadeira que coloquei na entrada da loja. Não parava de gritar, desesperadamente. Não preciso dizer que começou juntar gente, como galinha que vê cobra no quintal. Juntou tanta gente que fechou a rua para o trânsito. A velhinha (não estou dizendo ‘A senhora’ propositadamente), continuava a gritar, sendo que duas funcionárias tentavam acalmá-la, dando água, e segurando-a pra que não caísse da cadeira. A ocupante do fusca circulava pra lá e pra cá, entre a mãe e o acidentado (da moto), tentando acalmar a mãe, que segundo ela tomava remédios pra descontrole emocional, e tentava conversar com o rapaz da moto, dizendo que pagaria o conserto. Diante daquela confusão toda, um curioso mais exaltado, diz: “Pagar nada. O errado aqui é ele. A senhora poderia ter morrido se um vidro mais afiado atingisse alguma veia, ou até ficado cega”. Os outros curiosos à sua volta concordaram. “Vamos chamar a polícia”. A velhinha que continuava gritando ameaça se jogar ao chão, desfalecendo. Após chamar as autoridades, polícia e SAMU, esse curioso começa a ameaçar com agressão, o rapaz da moto, que não reagia a nada. As outras pessoas em volta gritavam junto, condenando a atitude do rapaz. Atendimento feito pelo SAMU, a polícia lavrando o boletim de ocorrência, as pessoas gritando pra que o rapaz fosse preso, dois policiais não tiveram outra alternativa senão algemá-lo e colocá-lo na viatura policial, saindo em seguida. Nisso, a velhinha se acalmou, parou de gritar e querer se jogar pelo chão, veio um guincho e levou o fusca pra uma oficina, tudo custeado pelo rapaz da moto. A multidão que se formara se dissipa. Tudo volta à “normalidade”.
 
De minha parte procurei ver os fatos de forma imparcial. Eu vi da seguinte forma: O fusca que apesar de imposto pago, não era levado pra manutenção provavelmente há algumas décadas. A moto estava ultrapassando pela faixa de ônibus (parada); esse foi o primeiro erro do motociclista. Se o fusca não batido na moto, certamente teria avançado pela calçada e atropelado no mínimo dez pessoas que aguardavam o ônibus, algumas com crianças de colo; e observei isso no momento, essas pessoas assustadas e que depois passaram a agredir verbalmente o rapaz. O segundo erro do motoqueiro foi ter atirado o capacete em direção ao fusca. Não tento aqui defendê-lo, mas apenas estou tentando ver os fatos de outra forma. Não acredito que ele tivesse intenção de machucar alguém. Foi um ato impensado, agindo pelo impulso do momento, afinal poderia ter morrido atropelado. Imaginou apenas provocar barulho ou um arranhão na pintura. Mas fusca tem o para-brisa “plano”, achatado, e quebrou com facilidade; os estilhaços machucaram a passageira. O rapaz também ficou assustado que não esboçou reação depois disso. Aguardou pacientemente a chegada da polícia, não discutiu com ninguém, não reagiu às provocações daquele curioso que o xingava, nem das outras pessoas que o ameaçavam. Sabia que havia excedido na reação. A velhinha ficou agitada após o curioso ter dito que chamaria a polícia. Queria se jogar ao chão, exagerando nitidamente na sua reação. Dando “piti”, colocando mais lenha na fogueira. Tanto que pouco depois estava do outro lado da praça, toda sorridente, querendo ir fazer compras. Os policias, creio eu, levaram o rapaz dali pra que o fato não tomasse proporções mais sérias.
 
É um relato meio longo, eu sei, tentei resumir ao máximo possível. Mas me chama a atenção a proporção e o rumo que os fatos tomaram. Não fosse levado pelos policiais, certamente o rapaz da moto seria linchado no local.
 
Concluo que o povo em geral não pensa. Sempre é levado pela emoção, sem raciocinar. Em grandes manifestações, como há vinte anos atrás, ou nessas mais recentes, certas ou erradas, a grande maioria dos manifestantes se moveu motivado por interesses que não aparecem. Acredito ser assim durante uma eleição pra cargo público, onde a maioria não sabe o que está fazendo, não tem um conhecimento razoável do que está fazendo, do que realmente quer. É tangido pra cá e pra lá, como gado. Depois temos que agüentar as conseqüências sem saber como voltar atrás. Enfim, falta educação. Educação pra discernir o que é correto ou não. Educação pra compreender seus direitos e deveres. Educação pra saber que o famoso ‘jeitinho’ é prejudicial à nossa sociedade. Eu também não gosto de pagar uma exorbitância de impostos, mas comprar produtos piratas é tão prejudicial quanto. E por aí vai. Essa bagunça é boa pra alguns que tiram proveito dela. Os mesmos que tem cargos de direção. Por nós mesmos não sabemos como reagir a tanta notícia de descaso com a coisa pública. Dinheiros de estatais e de impostos escoando pelo ralo. E o povo, sem educação, sendo tangidos pra lá e pra cá, como gado.



 
24/03/2014