Diálogo mal resolvido

- Alô? É da casa da Vera?

- Pois não. Sou eu mesma.

-Vera, aqui é o Jaime, lembra de mim? Fomos colegas do colegial, lá no Cambuci, em 73.

- Claro que me lembro. Há quanto tempo! Como vai?

- Estou bem. Quer dizer, a minha vida tá indo. Mas eu estou telefonando porque estou organizando a Marcha. É que faz cinquenta anos que aconteceu a Marcha da Família com Deus pela Liberdade e estamos fazendo uma segunda edição. Nós estamos fazendo uma campanha, convocando pessoas para engordar o movimento e eu me lembrei de você.

- Engordar o movimento??? Bem, eu já estou meio acima do peso e você está me chamando prá engordar mais? Eu até que já estou tomando mais cuidados com o colesterol, com uma comidinha light, evitando sorvete, chocolate. Já estou na dieta evitando glúten...

- Não, Vera. Não é isso. É o seguinte: a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, se você não sabe, foi um movimento de insatisfação contra o Jango – lá em 64. O movimento era contra o comunismo.

-Comunismo? Sei, sei. Explique prá mim o que é isso.

-Bom, é comunismo, tipo um negócio meio assim, que se acha o patrão e o Estado assim meio tipo explorador. Tinha um barbudo lá, um tal de Marx, que falava numa luta de classes, mas essa parte eu não entendi bem. Mas é assim. Vai ter a marcha da família...

-Meu filho, a minha família vai bem e os problemas a gente resolve em casa. Ninguém precisa saber. Já tivemos inúmeros revezes, mas com paciência e tentativa de compreensão e aceitação do outro, acabamos nos reorganizando emocionalmente.

- Mas a gente tem que ver essa coisa de família hoje, que não tá legal e ainda mais tem o governo comunista...

- Meu santo: em matéria de família eu entendo bem, mas você, pelo que eu me lembre, não entende muito não. Você era um baita de um safado, sempre traindo suas namoradas e depois a esposa, que eu conheci bem. E todas elas sofreram muito com essa humilhação. Tempos atrás você já estava no terceiro casamento, e sempre traindo...

- Ah, mas homem é assim, né? O que você quer que eu faça?

- Seja honesto nos sentimentos. Simples. Eu ainda me lembro: você foi o primeiro do colégio a fumar maconha.

-Mas eu ainda fumo.

- Tô vendo. Bem, você falou em governo comunista?

- É, o governo só sabe se alinhar com Cuba .

- Meu santo, onde você viu comunismo nesse governo? Sei lá quantas novas fortunas se fizeram nos últimos anos, o empresariado está rindo à toa...

- Mas tem Cuba.

- Que Cuba, meu amigo? O que você está falando? Cuba tá bem longe de nós em tudo.

-Vera, comunismo é coisa séria. A gente precisa mudar o poder.

- Concordo. Tem coisa errada demais no poder. Sempre teve. Conosco, a safadeza começou logo com a vinda da Família Real, em 1808, mas não vamos ficar dando aula de história pelo telefone. Mas, uma pergunta: você já conseguiu se modificar?

- Eu? Que nada , eu tô legal.

-Está legal? Que bom. Mas não foram essas as informações que eu tive de você. Eu soube que você andou lesando umas pessoas, dando cheques sem fundo, arrastando alguns tapetes em benefício próprio no seu local de trabalho... e, bem, olhando pro passado, eu me lembro do quanto você matava aula... e olhe, que o teu pai dava um duro danado para pagar a mensalidade... Eu me lembro o quanto você colava na prova, desrespeitava professor, roubou aquela prova de física da gráfica, lembra?

- Mas é coisa de moleque. Você é que é certinha demais.

- Pois é. E o que mais você quer falar?

- Então, vamos à marcha com Deus?

-Ah, eu me lembrei também do tempo em que se dizia ateu e até fazia piadinhas medíocres de Deus e das religiões. Antes tivesse ficado só na piadinha do pavê...

- Credo! Você tem uma memória!

- Jaime, eu não vou à marcha. Primeiro: não estou vendo comunismo em nenhum lugar. Segundo: marchar com Deus tem que ser sempre.

-Sempre?

-Lógico! A gente tem que fazer uma análise do nosso comportamento, melhorar sempre, ter humildade, paciência, esforço para se superar, partilhar...

-Peraí, você tá falando demais.

-Mas foi você que ligou...

Jaime, não dá prá gente ir prá rua exigir aquilo que não fazemos, porque não queremos ou não conseguimos. Só podemos exigir quando nós mesmos somos capazes de lidar com as nossas limitações e ...

- Mas eu quero a volta da ditadura.

-Você é um bebê, Jaime. Você quer que alguém cuide de você. Seja homem!

- Quer dizer , então , que você não tem saudades dos tempos da ditadura?

-... claro que tenho.

- Então vamos à Marcha de uma vez.

-Tenho saudades, Jaime, porque naquele tempo existia azeitona no pastel de carne. Tinha azeitona preta na empada e como ela era boa! Parece que ficava mais úmida. Vinha com caroço e tudo. Quando o meu irmão e eu íamos à cidade com o tio Dante fazer compras na Botica Ao Veado De Ouro, parávamos na Quintino Bocaiúva e comíamos empada com guaraná Brahma. Ah! O guaraná Brahma da ditadura era melhor que aquele inventado nos tempos de democracia! A paçoquinha Amor era também mais tenra, mas a gente ia comendo de vagarzinho prá não esfarelar toda. O doce de abobora de coração da ditadura era bem mais macio . E maior. Eu não entendi bem, mas, com a democracia, o doce ficou mais durinho. Eu até cantava “as praias do Brasil ensolaradas La La La La...” comendo doce da abóbora de coração. Tinha uma amêndoa no Sonho de Valsa no pré 64. A minha avó adorava! Era bem mais fácil encontrar Tubaína no mercadinho da esquina do que hoje. Quando tiver uma marcha pela volta da azeitona no pastel, você me chama e... alô, alô. Jaime, você desligou???

Eu não entendo, mas, de vez em quando, alguém desliga o telefone na minha cara!

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 26/03/2014
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