Lição de casa

Poucas coisas são mais apaixonantes nessa vida que aprender a ler! Foi o meu nascimento verdadeiro naquele ano de 1965! Nascimento para poder enxergar o mundo, desvendar mil mistérios que , inadvertidamente, surgiam à minha volta.

Tomei o caminho da escola de mãos dadas com a minha mãe, conceituada professora daquela unidade do SESI, próximo ao largo do Cambuci.

Pequena, os óculos pesados denunciavam as minhas limitações e consequente timidez. Um estado de alma que não permitiu que eu fosse mais além. Nem naquele ano e nunca mais.

Olhando para os lados, não senti medo das pessoas, do ruído da criançada que já ensaiava a administração do espaço. O espaço seria dela, quase nada meu. Na minha insegurança, a minha mãe sempre me alertava para não correr, não entrar em situações onde a bola poderia rolar. Sempre vinha a repreensão: “cuidado com os óculos!”

Com o tempo eu fiquei a pensar se aquela sugestão de cuidados seria o medo de eu me machucar aliado à dificuldade financeira em fazer mais um exemplar ou se seria a fabricação de mais uma menina submissa, pronta para ser adulta bem antes do tempo e aceita socialmente. Agora não importa: ainda luto para compreender as coisas que não fiz, as boas histórias engraçadas que não vivi, afastando as minhas críticas ou julgamentos vãos em relação àqueles que souberam e puderam ser crianças na hora certa.

Em fila, fomos direcionados à sala de aula. A minha primeira sala de aula! Um espaço de abertura para o universo. Como nunca eu sentia um prazer imenso pelo cheiro do pão com manteiga que exalava da minha lancheira cor de rosa. Era para a meia hora que durava o recreio.

E ganhamos caderno com a estampa do SESI, um lápis, uma borracha. Era como ouro puro que aquele material didático ia se acomodando nas minhas frágeis mãos que, um dia, ganhariam beleza e importância ao segurar um pedaço de giz e escrever sobre a História do Brasil, história de homens e mulheres encharcados de trabalho, opressão, sonhos de liberdade e inúmeras frustrações.

Logo na primeira lição da cartilha, vejo a pata, que nadava. Eu adorava entender a união das letras, a formação de ideias. Depois eu fiquei sabendo que a macaca era má.

E sempre ia uma maçã para a professora. Ou pera. Uma vez eu, heroicamente, saquei da lancheira uma bolacha waffer de abacaxi para entregar para o lanche da dona Aurora, mas saiu meio torta na ponta e eu nem fiquei sem graça. Na meninice a vida é mais espontânea, sem tantas maldades, cheia de cores mais suaves.

E, do lado de cima do pátio, eu olhava, na minha solidão, os garotos e garotas mais velhos tocando os instrumentos da fanfarra. Eu achava mágico aquele bater de pratos, o bumbo ecoando um som característico mundo a fora. Era parte de uma meninice que gostaria de dizer que estava viva, se aprontando para ir além, dizendo que tinha nome próprio e, um dia, teria identidade também. Aquela estava sendo a parte mais deslumbrante do meu mundo e esse mundo, eu pensava, poderia ser manso.

E eu estranhava porque as professoras não sorriam para nós. Nenhuma vez. Só sorriam quando a minha mãe estava por perto.

De vez em quando, o pão com mortadela no recreio. Um dia, veio uma empada, e eu surtei quando um menino , correndo, derrubou aquela preciosidade das minhas mãos. Juntei o menino com um dedo pela camisa , com uma força imprópria até para a minha idade e, quase chorando, eu dizia: “olha, você derrubou a minha empada!!!”

E as meninas marcavam lugar para se sentarem durante o recreio.

Uma vez eu deixei alguma coisa no banco, mostrando que, ali, ninguém poderia se sentar, até que veio um tal de Sílvio, metidinho à besta, e se sentou. Eu avisei que o lugar estava guardado e ele respondeu:

-“eu sento onde é que eu quiser”.

E lá ficou.

Olhei prá ele e o considerei um verdadeiro imbecil. Considero até hoje os que não respeitam alguma solicitação quando dita educadamente.

Numa tarde de inverno, com o maior encantamento eu chamei o meu pai e disse a ele que tinha aprendido a escrever “sapo”. E tinha um carimbo do anfíbio no canto esquerdo da página. E eu pintei a imagem de verde oliva.

Num fim de tarde, voltando de ônibus para casa, um senhor, sentado, parecido com o Drummond, olhou para mim e perguntou:

- “Ficou de castigo hoje?”

Com a cabeça e os lábios semicerrados, acenei negativamente. Achei um abuso aquela pergunta, um despautério, pois eu jamais saíra da primeira carteira e a professora era, para mim, uma provável reencarnação de alguma sábia do oriente. Onde já se viu uma pergunta dessas?

A vida, para mim, começou a se definir e a ganhar cor naquele tempo, usando uniforme com naturalidade, apontando os meus lápis com apontador verde e aferindo o calibre da ponta na bochecha engordada pelo ar aspirado pela boca. Tempos de troca de pedaços de lanche no recreio, de entendimento do possível, de afinidade com a vida.

Tempo. Vida. Movimento. Sem samba de uma nota só. Não aprendíamos música de alguma relevância, nada de espiritualidade e sem grandes preocupações. O mundo não era tão grande assim. Alunos pobres, alguns com olhar anêmico. A Tereza Cristina com uma saia mais bem acabada – deveria ter a mão da avó naquela estória. Aprendíamos a viver e ainda não se falava em sonhar... mas eu sonhava.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 28/03/2014
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