Caso do panetone quase vencido

Eu não fui anoréxica na juventude. Nunca fui uma pessoa preocupada em silhueta fina para me mostrar. Mostrar para quem? Ora, o melhor da vida é estar bem, mas isso eu descobri com o passar do tempo. Eu simplesmente não comia. Não sentia o menor apetite, o menor prazer em me alimentar. Tudo por conta de uma depressão oculta, pois, naquele tempo nem se falava nessa doença tão arrasadora. Antes: falava-se que depressão seria cuidada com um bom tanque de roupas para se lavar. Eu nunca compreendi o que a roupa suja tinha a ver com uma severa doença de alma.

Quem sofre de depressão conhece o tamanho da dor. O mundo é tingido apenas de branco e preto e a pessoa sequer desconfia o que seja uma ensolarada primavera com o perfume convidativo das lavandas, jasmins e manacás. Até os bem-te-vis são inaudíveis aos sentidos de uma pessoa depressiva.

Comecei a sentir uma imensa satisfação no paladar assim que comecei a namorar o meu marido.

De família italiana, a boa mesa se apresentava com sorrisos, sempre regada a histórias interessantes e com muita solidariedade nos ingredientes. Além das saudades saudáveis dos ausentes. Boas lembranças, amizades sinceras sempre. Na casa da vila Sônia as ceias de Natal eram preparadas com cuidado, muito capricho e a emoção da espera da chegada dos parentes queridos.

Aprendi a gostar de panetone, esse pão extraordinário nascido na Milão do século XV . Macio, saboroso, com as frutas se exibindo fartas a cada fatia, o panetone provoca a felicidade da reunião da família no calor da festa do nascimento de Jesus, a data mais importante da história, mais carregada de simbolismo e de bons sentimentos de paz, luz e esperança..

Final de março: Toca o telefone. O meu cunhado, querido e muito estimado, resolve me relatar uma situação inusitada:

- “Tudo bem aí, Vera?”

- “Tudo certinho. E aí?”

Conversa vai, conversa vem:

- “Aproveitei uma promoção de panetone hoje. Panetone chic no úrtimo. Argentino”.

-“É? Que legal”.

- “Advinha quanto paguei?”

Bem, eu nunca fui muito boa em artes divinatórias, mas arrisquei:

- “5 reais”.

-“Não, menos”.

Fui baixando prá 4, 4,50...e sempre vinha a negativa até que ele mesmo falou:

-“Cinquenta centavos!”

-“Caramba, William! Lógico que estava vencido”.

-“Não. Vai vencer amanhã”.

- “Não tem importância. É só encher o freezer e a gente vai comendo até o fim do ano.”

Silêêêênnnncio.

- “William, quantos você comprou?”

- “5”.

- “5???????????”

- “Mas eu aproveitei e dei um de presente e vendi dois.”

Nesse momento a minha pressão arterial passou a subir em desvario. Subiu vertiginosamente e tive até medo de pagar o aparelho para fazer a aferição. Tive que interromper a ligação para tomar o meu Selozok 100 mg. Eu já estava atrás da minha carteirinha da UNIMED para uma eventual internação.

-“William, você se desfez dos panetones?”

“Não. Ainda tem dois.”

“Doisssss?”

- “É”.

Nessa hora o oxigênio começou a me faltar e eu comecei a ficar cianótica.

- “William, por quanto você vendeu os panetones??????”

Eu já gritava em desespero.

-“1,50”.

- “Minha Nossa Senhora, você revendeu os panetones importados a 1.50????” Ainda por cima o Ituano acabou de marcar um gol no meu Palmeiras, olha só... ai, como eu sofro”...

-“rá rá rá”.

-“Só podia ser corintiano mesmo prá fazer uma coisa dessas com a cunhada do coração”.

Não teve final de conversa. Quando acordei, estava deitada e devidamente protegida dentro de uma ambulância do SAMU.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 30/03/2014
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