Ainda bem que a Cecília não viu.

Na minha juventude, apaixonei-me tremendamente pela literatura de Cecília Meireles. Pela sua densa e completa poesia comecei a senti uma paixão imensa pela arte de viver e de estar no mundo. Com ela aprendi o deslumbramento que o sonho, a espiritualidade, a contemplação podem trazer e nos ajudar a florescer. A poetisa foi uma das pessoas mais importantes e interessantes dos meus primeiros tempos como ser pensante.

Mulher capaz de cultivar uma poesia viva, vibrante, carregada de lirismo e de paixão pelo humano. Mulher eterna, de luz inconfundível aquela!

Numa das suas últimas entrevistas, em maio de 1964, com sua peculiar serenidade, declarou: “Tenho um vício terrível. Meu vício é gostar de gente. Tenho tal amor pela criatura humana, em profundidade, que deve ser doença.”

E dentro da sua simplicidade em articular as palavras, Cecília ousou definir “liberdade”.

"...Liberdade, essa palavra

que o sonho humano alimenta

que não há ninguém que explique

e ninguém que não entenda...

Cecília Meireles fez história pautada na vida, em preencher esqueletos com sentimentos finos, iluminados e duradouros. Deixou uma herança cultural fabulosa, publicações que nos ressuscitam como seres capazes de atuar no palco da existência com profundidade, pureza e muita, muita emoção.

A poetisa faleceu em novembro de 64 no Rio de Janeiro. Cecília não viu os desdobramentos do golpe militar articulado meses antes.

Passamos pela crueldade até inacreditável aos olhos mais insanos. Conhecemos de perto as agruras do medo, do silêncio imposto, dos gritos alucinantes ecoados aos montes nos porões. Verdadeiros calvários recheados de pranto, sangue e odor pestilento da sandice no seu aspecto mais primitivo da condição humana.

Conhecemos o passado e as suas dores lancinantes. Conhecemos também as mentiras que permearam as justificativas para a completa expressão do mal. Mas, nesse meio século após a implantação da ditadura, me vejo perplexa e numa angústia sem fim diante de inúmeras falas que a mídia nos apresenta dia após dia. Anônimos se colocam deixando as opiniões em textos publicados sobre os depoimentos de carrascos que atuaram no período. E quantos estão a parabenizar aquele tempo de sombras e tempestades! Alguns debocham. Outros tantos têm a petulância de dizer: “é pena. Não fizeram o serviço completo”. Acredito ser daí a triste expressão da própria Cecília, ao dizer que “morria cheia de assombro”.

Diante das falas dos verdugos na Comissão Nacional de Verdade, com detalhes de crueza, cinismo, sadismo inveterado e algum sorriso, só posso me lembrar de quanto nós, cidadãos comuns, erramos ao educar os nossos filhos ao longo desses cinquenta anos.

Olhar e ouvir os carrascos podem nos levar a uma conclusão simplista: vão morrer logo e pouco há o que se fazer com eles. Mas e os mais jovens que apoiam aquelas atitudes nefastas? O que fazer com esses que não sentiram na pele a barbárie e as chagas na alma?

A maioria de nós falhou grosseiramente ao fazer vista grossa nas maldades do cotidiano, do tirar proveito, mentir e desdenhar do outro, achando que “era coisa de criança e isso ia passar”. Educamos os nossos filhos para não olhar para os lados e nem para trás. Apenas para frente almejando sucesso e dinheiro, de preferência, acompanhados por alguma fama. Pudor? Sei lá. Isso não vem ao caso. Ética? Isso é conversa que também não faz tanto sentido. Deixamos de lado a valorização da amizade sincera, do exercício da paciência, da lealdade, do respeito ao diferente. Nós nos esquecemos – ou porque dá muito trabalho – de ensinar que a vida é soberana e pode ser sim encharcada de encanto absoluto. E viver não é tão difícil assim. Basta saborear cada momento de encontro, o diálogo com olho no olho, saber ouvir e atender um chamado daquele que tem algum tipo de fome: pode ser de pão... ou de beleza.

E que deve-se trabalhar sim, trabalhar muito pela construção da dignidade. E a vida flui. O dinheiro? Ele vem , é claro, e na medida certa. Poder? Bem, poder é, em geral, para aquele que necessita esconder suas inseguranças, as suas frustrações. Esse sente que precisa mandar e ser obedecido para encobrir os seus recalques. Podre poder!

O grande escritor português José Saramago tinha uma definição bastante contundente ao falar de filhos.

“Filho é um ser que nos foi emprestado para um curso intensivo de como amar alguém além de nós mesmos, de como mudar nossos piores defeitos para darmos os melhores exemplos e de aprendermos a ter coragem. Isso mesmo! Ser pai ou mãe é o maior ato de coragem que alguém pode ter, porque é expor-se a todo o tipo de dor, principalmente o da incerteza de agir corretamente e do medo de perder algo tão amado. Perder? Como? Não é nosso, recordam-se? Foi apenas um empréstimo”.

Esse meio século pós-golpe nos mostrou que falhamos como pais. Não fomos homens e mulheres suficientes para ensinar. Sim, ensinar, quer dizer, “deixar um sinal” em alguém. De preferência, muito positivo.

Muitos se esqueceram da vida que poderia ter sido.

Então o verdugo aparece na imprensa e trocentos outros se mostram na covardia do anonimato via internet: “Eta tempinho bom”, “eu era feliz e não sabia”, “tenho saudades da redentora”, “eu faria a mesma coisa se estivesse lá”. Conheci um ser respirante que, certa feita, disse: “o meu irmão trabalhou no DOI-CODI” e teceu elogios contundentes àquela época tão nefasta e amaldiçoada.

Esse ser vivente não ficou vermelho e nem gaguejou.

Pobre sociedade que tem os seus psicopatas perambulando à espera de novas oportunidades! Estão por aí aos montes. E não enrubescem as faces!

A construção histórica, bem como os nascidos e criados ao longo desse meio século, merecem uma reconsideração. Para que a vida floresça, é preciso sentir, fazer o exercício da empatia, sentir a dor alheia como se fosse a sua. Os sonhos alheios como se fossem riquezas a serem partilhadas. Repensar a existência e buscar uma ação humana no seu sentido maior.

Como foi possível parte dessas gerações concordar com facínoras, dizendo que torturar faz parte de um “serviço”? E tantos não percebem a monumental tragédia que essa fala traduz.

Acabamos dizendo muito pouco aos nossos jovens! Ou, quem sabe, conversando muito pouco ou quase nada sobre as coisas do respeito e da felicidade.

Que o nosso pedido de desculpas venha logo, a jato. E que seja aceito! Com urgência urgentíssima para que essa fila de espera de torturadores tenha tempo de se repensar, de conhecer o significado e a essência de algumas palavras muito bem ditas nos evangelhos da paz.

Cecília Meireles dizia

A vida só é possível reinventada.

Anda o sol pelas campinas e passeia a mão dourada pelas águas, pelas folhas. . .

Ah! Tudo bolhas que vêm de fundas piscinas de ilusionismo... – mais nada.

Mas continuo dizendo: ainda bem que a Cecília não viu.

Afinal, em que espelho ficou perdida a nossa face?

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 31/03/2014
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