Preciso terminar meu quadro!

Dona Ester morreu. E só. Foi boa mãe e mulher. Casou-se jovem e teve dois filhos. Cuidou deles com desvelo e dedicação como cuidou do marido. Cometeu erros, acertou muito, foi feliz, foi triste, viveu em paz, passou por turbulências, descansou. Teve dissabores e alegrias com os filhos e com os amigos. Viveu. Teve o marido como companheiro até que ele se foi há pouco mais de doze anos. Mas aí veio a depressão da perda e a recuperação com ajuda e apoio dos filhos, das noras (Dona Ester teve sorte até com isso) e das pessoas que cativou ao longo da vida, já que Dona Ester era amável e doce (apesar de tudo e de todos que teimaram em tentar amargar a sua vida). Foi ao médico – como fazia todos os anos depois que completara cinquenta verões – e a única recomendação que recebera, já que sua saúde sempre estivera em ordem foi: Ocupe-se. “Meu Deus e agora?” pensou ela. “Ocupar-me com o que? Meu marido era minha ocupação, com sua saúde frágil e seu jeito dependente. O que vou fazer?”. Foi quando a depressão instalada, obrigou-a a procurar a vida de novo e um atelier de arte próximo de onde morava, deu-lhe novo alento e um fim à depressão. Há cinco ou seis anos, Dona Ester que ia religiosamente duas vezes por semana ao atelier, começou do mais básico início – nunca havia sequer pego num pincel ou num tubo de tinta – e seus quadros agora refletiam cores vibrantes e paisagens bucólicas. Flores vivas, cenários coloridos eram postos em tela e tinta a óleo e vinham enfeitando as paredes de casas de amigos e parentes já há bastante tempo. E Dona Ester estava de novo apaixonada pela vida, pelos seus quadros e pelo seu professor.

O dono do atelier e professor de Dona Ester, artista plástico em destaque no meio artístico – apesar da pouca idade - era um jovem talentoso e fora procurado por ela quando o médico lhe indicara uma terapia ocupacional. A empatia e o desvelo com que ele tratava seu trabalho e seus alunos fizeram com que ela se matriculasse sem demora naquele pequeno atelier para aulas de pintura em óleo sobre tela, coisa que ela jamais pensou ter qualquer aptidão. O rapaz fez com que Dona Ester desenvolvesse um talento que nem sabia que existia e ela devolvia a ele e a todos os colegas de hobby, o carinho e mesma atenção com que era tratada. A assim foi durante mais de cinco anos ininterruptos, sem faltar a uma só aula, fizesse chuva ou fizesse sol. O jovem artista acostumara-se a ter Dona Ester por perto. E ela a ele.

Mas, efêmera como a própria vida, Dona Ester, seu sorriso e sua presença nas aulas do jovem artista um dia terminaram. Dona Ester não poderia mais comparecer. Fora chamada a comparecer do outro lado. E todos sentiram sua partida. O jovem artista fora o mais afetado. Sem nunca ter se dado conta que isso um dia poderia acontecer, afeiçoara-se mais do que imaginara àquela boa senhora. Gostava de todos os alunos indistintamente, sempre os tratando com respeito – e porque não – com admiração. Mas, com Dona Ester tinha sido diferente. E naquele dia, ele tinha ficado muito, mas muito triste.

Dona Ester acabara de acordar. Ou melhor, abriu os olhos e de um salto, levantou da cama de lençóis alvíssimos ainda meio desnorteada e de uma só vez soltou a exclamação: “Deus! Preciso terminar meu quadro!”.

No dia que seria a aula para finalizar um quadro em que estava trabalhando – faltavam algumas pinceladas, umas sombras aqui e acolá, retoques e ajustes nas cores da paisagem – Dona Ester sentira-se mal de véspera. Tomou seus remédios, como de costume e fora deitar-se. Mas não acordou. Seu quadro ficara no cavalete no atelier do jovem artista, interminado. “Ai, preciso terminar meu quadro, Jesus!” falou de novo, já mais desperta. Dois homens que aguardavam, de pé ao lado da cama o seu despertar, imediatamente trataram de acalmá-la. “Calma Ester! Você está bem agora e entre amigos” falou uma voz familiar. “O que?” Ela voltou-se para a voz conhecida e viu que era seu marido que estava ali. “Alfredo? O que você esta fazendo aqui? Eu preciso terminar meu quadro!” Um dos homens ali, o de aparência mais velha e mais sábia, olhou nos olhos de Ester e do marido dela, que logo entendeu a situação e viram que não restava outra saída.

O jovem artista sentara-se em frente ao quadro inacabado de Dona Ester. Todos os alunos já haviam ido embora e ele arrumava o atelier, recolhendo tintas e palhetas deixadas pelos alunos quando, sentou-se para admirar o quadro de sua aluna mais especial. Fitava a pintura inacabada de sua pupila, pensando que aquela seria a aula em que ela terminaria o quadro. Olhou e olhou de novo, como que tentando decorar os traços da paisagem ali reproduzidos e sentiu de novo aquela tristeza pela falta de Dona Ester. Sentiu também pelo trabalho inacabado. Não teria coragem de finalizar aquele trabalho e disse a si mesmo que entregaria o quadro à família assim que fosse possível. Enquanto olhava aquela pintura, começou a recordar as horas que passara junto àquela boa senhora, ensinando-a a desenhar e a pintar. Como, no começo, ela ainda deprimida, com o apoio e a dedicação do moço, foi despertando para a arte e para seus quadros. Lembrou-se nitidamente como suas gravuras, que no começo eram um pouco vazias e carentes de cor, hoje refletiam vida e muita cor. Deu-se conta de como nossa passagem por este mundo é rápida e que cada segundo conta para fazermos o nosso melhor, sempre, semeando como fazia Dona Ester, alegria, cordialidade e respeito. Pegou-se, então divagando sobre a vida e sua arte, quando foi tomado por uma sonolência incrível. Suas pálpebras, de repente, ficaram pesadas e seus olhos começaram a se fechar com uma força terrível. Sentiu uma presença familiar, mas em meio ao torpor que sentiu achou que era só uma coincidência. Então ele adormeceu.

De um salto, o jovem artista acordou. Abriu os olhos e ainda tonto, esfregou-os lentamente. Espreguiçou-se, sentindo um pouco de dor nas costas pelo mau jeito com que havia adormecido. Olhou no relógio e viu que havia adormecido pouco mais de trinta ou quarenta minutos e pensou logo em terminar a arrumação de seu atelier para poder ir para casa, quando olhou novamente para o quadro de Dona Ester. Quase caiu de costas. O susto pelo que viu o fez tropeçar na cadeira onde estivera sentado, segundos atrás e, por pouco não derruba outros quadros de alunos, causando um belo estrago. O quadro de Dona Ester continuava ali no cavalete. Porém, havia sido terminado. Havia sido assinado e a tinta ainda jazia fresca. O artista parou ali de fronte o quadro e quanto mais ele olhava aquilo, menos entendia. Foi quando apanhou a pintura do cavalete para examinar mais de perto. A luz de seu estúdio atravessou a tela levemente e ele pôde vislumbrar no verso, uma sombra diferente. Parecia algo escrito. Imediatamente virou a tela e leu, com a respiração ofegante e o coração aos pulos, uma dedicatória escrita à pincel e tinta: “A você meu querido mestre, que me ensinou que viver vale a pena. Um beijo no seu coração. Ester”. Foi quando, com os olhos cheios de lágrimas, olhou as próprias mãos as viu sujas de tinta. As mesmas do quadro de Dona Ester.

Dona Ester acordou de novo naquela mesma cama. Agora já não mais de um sobressalto, agora de consciência tranquila e serenidade no olhar. Seu falecido marido ainda a aguardava ao lado do leito, acompanhado pelo mesmo homem de antes. Ambos fitaram-se e Alfredo sorrindo, foi o primeiro a falar. “Sente-se bem minha querida?” Um aceno e um sorriso foram a resposta de Dona Ester. O homem ao lado deles então, de rosto iluminado pela pronta recuperação daquela mulher, falou em tom alegre: “Ótimo! Então Alfredo, o que acha de convidar Ester para um passeio? Ela parece muito bem para uma caminhada!”. Alfredo assentiu com a cabeça e disse: “Vamos?” E Dona Ester, em meio a um sorriso, foi logo perguntando: “Vocês tem atelier de pintura aqui?”