CRIANÇAS BRINCANDO: GRANDES MENTORES

O dia conservava um clima propício à produção. Pilha de serviços para serem deslanchados à mesa. A editora espera os textos que escrevo. Mas não tem como, tem-se que dar uma pausa de tempos em tempos. Tem hora que a mensagem não vem. Escrever é como psicografar. Ainda que seja um texto didático. O ato de trazer à superfície da memória informações, minar, organizar e despejar caracteres na plataforma do software de edição de textos o que está na mente é uma verdadeira atividade espiritual. Canalizar e manifestar ideias. Para me manter animado e aproveitar a oportunidade do clima, sai para tomar ar fresco e café. Escritores e analistas de sistemas gostam muito de café.

E aí, com a xícara na mão, atravessei a sala vazia com uma tevê ligada ao léu e tomei o rumo da varanda da casa. A garagem estava vazia e o portão de grade devidamente trancado. A dificuldade de contemplar a vista do bairro vizinho por causa do éter enevoado confirmava a condição atmosférica que causava o clima temperado e amigo dos trabalhadores que executam atividades intrinsecamente intelectuais. Ao ar livre, sobre o frio solo de pedra ardósia, vi meus sobrinhos a brincar. Decidi fazer o trivial: ir cutucá-los com algum dos meus non senses. Gosto de forçar o aprendizado deles ao me corrigirem um erro que geralmente eu os faço propositalmente perceber. Pensei em dizer para eles "está muito frio, vamos colocar roupa de nadar". Pensava que ia vir o delicioso "Ih, tio, quando tá frio a gente não nada não", que eles dizem com tom ignorante e conservando olhares furiosos. E eu me esbaldo porque percebo que estão aprendendo. Só se aprende reescrevendo a matéria ou senão corrigindo o professor.

Eu não esperava que o que ocorreu depois pudesse me inspirar esta postagem. Algumas tábuas eles fizeram de cama e sobre elas eles colocaram um colchonete que não sei de onde viera. Ao lado da cama, o skate do menino virara cômoda de cabeceira. Transformou-se em um criado mudo que dava suporte para um cofrinho de porquinho que estava sobre ele. A garotinha ocupava a cama como se preparasse para dormir e o garotinho dizia que ia ajustar o despertador. O despertador era o cofre. Eu nem tive dúvida de que ia explorar aquela imaginação ao extremo. Era a chance de eles me dizerem coisas proveitosas que saem de sua diversão. Cofre e despertador. Rádio-relógio. Três em um. Dois em um. Móvel combinado. Moto-rádio. Putz! Será que tudo quanto é combinação que a gente vê o insight saiu de um momento desses: a imaginação das crianças em plena exibição? Perguntei para mim. "Taí! Vou inventar um cofre-despertador. Ele despertará as pessoas para fazer economia logo ao acordarem." falei para eles e deixei o local. Certamente um deve ter levantado as palmas das mãos para cima e olhado para o outro com aquele jeito de quem não entendeu nada.

Retórico ou não, o surgimento do insight é bem como ilustrado nesta crônica. É claro que eu não sai para inventar nenhum cofre-despertador, mas confesso que pensei a respeito. Passei um tempo analisando no que um invento desses ajudaria as pessoas. Por curiosidade apenas. Ao voltar para o escritório para tecer este texto fiz o caminho reverso e passei pela sala com a tevê ligada ao léu. Uma chuva de indagações inundou meu mundo mental. Poxa, a televisão, como será que se deu o insight dela? Será que surgiu ou foi caçado? Quem imediatamente após a Segunda Guerra Mundial iria pensar em um meio de transmitir imagem e som para as casas das pessoas à troco de nada? A troco de nada não. Refleti melhor. O que pode ser mais eficiente em conduzir pensamentos para um número ilimitado de atenções do que ondas eletrônicas que se espalham livremente pelo ar, invadem qualquer lar e podem ser decodificadas, formando assim o perigo? É claro que é preciso que as pessoas comprem o decodificador, mas: é difícil fazê-las comprar? Parece mágica o negócio. Entretém. Dá pra ver telenovela.

É a melhor forma de telepatia que existe. Constatei. Concreta e coletiva. Via única, não dá para replicar a mensagem diretamente para seu emissor. Se ele me agredir, fico com o prejuízo e pronto. Como provar que fui agredido por alguém que é um videoteipe? Que pode dizer que não foi comigo que ele estava falando? Não é como o telefone. É mais parecido com o rádio, só que tem o reforço da imagem. Não é que uma imagem vale mais do que mil palavras? Uma imagem errada então vale mais do que vozes e vozes tentando corrigir a informação, mesmo se recebendo ouvidos. Imagens que recebem o auxílio luxuoso de sons e textos e que induzem as pessoas a cometerem erros são boas para um monte de coisas, entre elas fomentar a aceitação de algo que elas não aceitariam facilmente ou comprar o que não comprariam se dependesse de serem abordadas só pela voz de um vendedor presente e a poucos metros. Foi de fato um insight prodigioso.

Talvez seja por isso que mais vemos informações erradas na televisão. Erros que quando corrigidos nunca é a tempo de não causar o estrago intencionado. A emissora espalha o pensamento dela de um ponto e quase sem esforço tem canalizado e refletido este pensamento. Quem que se submete a uma transmissão televisiva e que não reage a ela? Alguma coisa se faz. Algum retorno se dá. Não só se absorve e guarda. Comunicação a distância. Comunicação e expressão da comunicação. Combinado. Dois em um. Rádio-relógio. Bomba-relógio. Cofre-despertador. Poder paralelo. Inspiração é ver as crianças brincarem e a tevê é bom deixar do jeito que estava: falando sozinha. Só se perde dando atenção para ela.

Eu sou autor do livro "Contos de Verão: A casa da fantasia". No qual é amplo o número de insights gerados, discutidos e ficticiamente testados.