Sopro do tempo.

E de repente, me vejo perdida em pensamentos vãos. Quanto tempo faz? Diante das breves contas realizadas mentalmente, percebo as décadas que se foram.

Das janelas do nosso apartamento no Cambuci, eu olhava, na minha infância, as luzes do centro da cidade e ficava imaginando: como seria estar lá? Caminhar à noite, passear defronte à catedral, andar, simplesmente. O centro, à noite, deveria ser mágico, perfeito, único! As luzes do meu Cambuci eram de uma ternura inatingível, melodiosa até. À noite, às vezes, a minha mãe passava roupas. Eu sentia o cheiro peculiar daquele ferro quente crispando ao contato com a água borrifada pelo molhador e eu olhava com ternura para o luar de uma São Paulo que me convidava, silenciosamente, a caminhar por ela a passos mansos e cúmplices.

Sem sofrimento agora, o pensamento e as reflexões se expandem. Com alegria pela superação de inúmeras perdas, de projetos que teimaram em se realizar tardiamente e eu os desejava de imediato. Eles vieram depois, bem depois, com a maturidade e o entendimento das razões da demora.

E relembro situações que me comoveram. Outras, constrangeram. Tantas me deixaram de olhos marejados. A festa que não fui. A brincadeira que não brinquei. O bolo de casamento que vi e não me foi servido nenhum pedaço. O sono brutal e tragicamente interrompido pelos gritos desesperados de dor do meu pai e a pena, a incerteza, o profundo medo dos segundos seguintes. Ele voltaria para casa depois do hospital? Ah! Beneficência Portuguesa de triste memória...

O sorriso que não se alargou no meu rosto. O baile que não houve. A música que pouco tocou na vitrola Telesparker do canto da sala, sob a janela e ao lado do pufe da minha avó. As poucas amizades e a minha timidez não permitindo que as pessoas felizes se aproximassem.

E me alegro ao perceber que sobrevivi. E concluo: faz tempo. Foi no século passado. E me contento mais ainda ao dizer: não. Foi no milênio passado que as dores e dissabores se acotovelavam vorazes na minha alma inquieta, disputando ferozmente pedaços de um ser ainda franzino, de óculos pesados e de lentes espessas e com um anacrônico toque de laquê no cabelo para ir à escola primária.

E penso nos colegas de colégio. Por que eu não disse a eles que eu queria me libertar, correr, rir , falar, aprender a contar alguma piada? Eles não entenderiam naquele tempo. Mas eu pouco me recordo dos rostos deles, sequer dos nomes. Apenas alguns . Procuro pela Internet, tento buscar nas imagens e fico feliz ao perceber que alguns voaram e foram longe. Como eu amava essas pessoas, no meu silêncio e solidão!

E tento recobrar espaços no hoje, porque isso agora me é possível. Deixei a solidão para o milênio passado. Na passagem do ano 2000 para 2001 comprei a Folha, fiz a leitura e guardei o jornal. Foi muito mais que guardar amorosamente um documento histórico. Foi uma tentativa material de ter um marco, um ritual impresso e poder visualizar uma tentativa de deixar o passado no seu devido lugar: o choro, a solidão, a sofreguidão para conseguir um emprego e contribuir para o andamento da casa, o medo de andar à noite na rua, na volta para casa depois de algumas aulas ministradas, o driblar a vontade do meu pai, de me ver submissa e sem vontade de viver. E eu queria viver! Como queria! Jamais usaria roupas cinzas. Jamais usaria um taier. Jamais jantaria um prato de sopa.

O passado no seu lugar. Resolvi deixá-lo lá, quieto, pois posso dizer que construí, lenta e metodicamente, um sentimento de extrema importância : a compaixão. CONSEGUI!!!! E esse grito de CONSEGUI tem o mesmo sabor daquele dia de janeiro de 1977, quando vi o meu nome na lista dos aprovados da FUVEST, quando do meu vestibular para História na USP.

E só depois de exercitar a compaixão é que consegui caminhar e sentir o sabor adocicado de aprender a pintar em telas tendo a minha mãe como professora, entrar como aluna na escola de oleiros e produzir artefatos cerâmicos. Consegui entrar na escola de música, comprar um pandeiro, fazer o meu próprio ganzá e dar graças à existência!

Hoje, choro prá mim, é só o do Pixinguinha, Waldir Azevedo, Zequinha de Abreu, Jacob do Bandolim, Ernesto Nazareth, Benedito Lacerda... Graças a Deus!

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 28/04/2014
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