“quais quais quais quais quais quais “ - Meio século de “trem das onze”

Não consigo me recordar da primeira vez que ouvi o clássico “trem das Onze”. Interessantíssimo o samba, misto de despedida e responsabilidade. Cheguei até a discordar de Vinícius de Moraes quando dizia que o samba era a tristeza que balançava.

E me lembro, lá pelo final dos anos setenta, no nosso apartamento na Aclimação, minha irmã e eu assistíamos um programa na televisão e o Adoniran e os Demônios da Garoa se apresentavam. Nós começamos a dançar e a cantar na sala, munidas de um pano de prato e acenávamos prá não sei onde. Foi um delírio, pelo menos para mim.

Para o Brasil, 1964 foi um ano maldito pelo início do obscurantismo político, mas, para compensar a hecatombe, foi também o ano do nascimento do samba mais famoso de Adoniran, que veio acalentar a nossa alma que começara a sangrar pela sandice que nos foi imposta.

E muito me orgulho de o mesmo ser conhecido e cantado pelas gerações seguintes.

Muitas vezes , munida de um aparelho de som, fui para a sala de aula com o CD do nosso sambista a fim apresentar para os alunos o retrato poético e tantas vezes doloroso da industrialização de uma São Paulo que desabrochava para o crescimento acelerado. As malocas, que deixaram saudades, pois perderam espaço para a construção de um “adifícil arto”. Tempos do operário que teimava em acreditar que Deus daria o frio conforme o cobertor. Além do drama provocado pelos avanços da modernidade, pelo impacto da grande circulação de automóveis pela avenida São João, culminando no atropelamento da Iracema, o grande amor.

E com caixinha de fósforos nas mãos, Adoniran aproveitava as viagens de trem para compor, criando tipos urbanos, como o Moacir, o Arnesto, o Nicola. O “Trem das Onze” estava em fase de criação quando , atravessando o bairro do Jaçanã, o poeta popular aproveitou o nome da estação para rimar com “manhã.” Ele havia achado bonito o nome.

Por iniciativa dos Demônios da Garoa, grupo musical com atuais 71 anos de existência, o emprego das expressões mais populares ganhou espaço e importância. A “táuba de tiro ao Álvaro” virou representativa desse estilo “narfabeto” de compor. E ganhou aceitação nacional.

O “trem” tem sobrevivido com dignidade quando quase não se usa mais esse meio de transporte. Certamente a maioria das pessoas que batuca, canta e dança ao som desse samba, identidade intrínseca de São Paulo, desconhece o prazer e a dor de fazer uma viagem a uma velocidade limitada diante da pressa insana que nos governa.

E que felicidade visceral quando, ontem, na aula de música, a professora orientou:

- “Para hoje vocês devem tomar uma decisão musical. Vocês vão escolher uma música e vão fazer um arranjo. Usem os instrumentos possíveis para o conhecimento que já têm”.

O nosso quinteto se formou. Conversa rápida para a escolha da música. No grupo, duas paulistanas e três manezinhas (o manezinho da ilha é o nativo de Florianópolis e que muito se orgulha das raízes e dos traços cultuais açorianos). E qual não foi a minha alegria quando as manezinhas propuseram um arranjo para Saudosa Maloca! Como nem todas sabiam cantar, eu propus o Trem das Onze. De imediato, todas sorriram e, com entusiasmo e decisão, começaram a batucar.

O nosso arranjo ficou lindo! Para mim, uma alegria imensa pelo reconhecimento ao autor e pela consideração com o significado daquele samba. Uma energia insuperável de saudade, respeito, admiração pela cultura e pela cidade que acolhe a todos se apoderou do meu sentimento e pensamento naquela noite.

Para mim, uma experiência única, encharcada de beleza, doçura e pureza. Contei a elas que esse samba já foi traduzido até para o hebraico, além do italiano, espanhol e francês. Mas a emoção foi maior que essa informação técnica.

Obrigada, Adoniran! De todo o coração, muito obrigada mesmo! O meio século de “Trem das Onze” ajudou a eternizar São Paulo até para aquele que jamais pisou naquele solo, carregado de sofrimento e doçura, multidão e abandono, dúvidas e busca de certezas. Desencantos e paixões. Terra de imigrantes e de todas as crenças. Terra da diversidade, da tolerância e do medo do ladrão. Terra de construções históricas delicadas! Cidade que nasceu aos pés de um colégio jesuíta! Espaço que teve que se reinventar centenas de vezes e fez com que as diferenças se abraçassem e tentassem sorrir. Cidade repleta de cultura, de ONGs, de universidades, de pluralismo das ideias e ações, onde uns tantos encontram tempo para dar o ombro a um desconhecido, no desespero da sua solidão: CVV, boa noite! São Paulo sempre arruma tempo para se dizer viva em todas as estações e em todas as temperaturas políticas. Mas nunca túmulo do samba.

Cabe recordar Charles Chaplin, quando dizia:

"A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante, chore, dance, ria e viva intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos".

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 02/05/2014
Reeditado em 02/05/2014
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