Um trem em movimento

I

Começava a fazer frio, com a aproximação do mês de Maio, e eu estava feliz por finalmente poder dormir sem o barulho do ventilador de teto ligado.

Eu podia ouvir meus camaradas jogando poker, no quintal, com umas garotas realmente estranhas, depois de um dia inteiro se empanturrando de carne e bebendo cerveja.

Ouviam Led Zeppelin e contavam histórias sobre suas vidas na faculdade, enquanto se divertiam com as cartas.

Eu até iniciara o dia com eles, mas por algum motivo que desconheço, resolvi me enfurnar no meu quarto e ler qualquer coisa embaixo das cobertas. Não conseguia me concentrar, por causa do barulho, mas aquilo fazia parte da vida em repúblicas universitárias. No fim, não era de todo ruim. A maior vantagem é que tornava a vida mais barata.

Além do fato de sermos todos biólogos, não posso dizer que eu tinha muitas coisas em comum com os dois rapazes que moravam comigo... tinham hábitos estranhos, cada um a sua maneira, mas no fim eram ambos boas pessoas.

Eu estava realmente de mau humor e não conseguia nem sentir o cheiro de cerveja, tal era a minha ressaca do dia anterior. Logo acho que fazia sentido deixá-los se divertindo lá fora e ficar no meu canto.

Me sentia culpado por não estar trabalhando, apesar de ser domingo. Eu tinha uma enormidade de coisas para por em dia, estando nos últimos meses do doutorado. Minha tese esperava polimento e eu mal tinha paciência para olhá-la.

O frio só tornava as coisas mais difíceis. Me fazia querer ficar na cama pensando em qualquer outra coisa, menos em trabalho.

Já havia me conformado. Afinal como um procrastinador crônico, eu era quase profissional em empurrar responsabilidades com a barriga para um pouco mais a frente.

No fim das contas, outras coisas me incomodavam mais do que o meu prazo, que nem de longe estava tão apertado quanto poderia estar.

Fazia naquele dia, dez anos que eu pusera meus pés pela primeira vez numa universidade. Naquele tempo, eu não tinha idéia que a academia poderia me levar até a minha situação atual. Eu era tão ingênuo que nem sabia o que queria para minha vida...

Continuei ruminando aquelas idéias embaixo da coberta, passando os olhos pelas linhas do texto sem absorver as palavras...

Tinha o pensamento fixo nesses dez anos e nas coisas que passei para estar onde estava...

Mas principalmente nas coisas que deixei de lado... e no que ainda teria que deixar de lado para continuar seguindo esse caminho.

Me perguntava se era realmente o que eu queria para mim.

Estava revisitando a memória daqueles primeiros passos, dos passos que se seguiram e tinha cada vez mais vontade de pular daquele trem em movimento.

Esse era um dilema que praticamente todo mundo que fazia carreira acadêmica passava. Tirando os engenheiros, eu acho. Sempre havia emprego para engenheiros. Já na área de Saúde e das ciências biológicas, praticamente todo mundo passava aperto. Até alguns talentos natos se viam doutores e mendigando pelas bolsas magras que o governo os oferecia para viver no limbo do pós-doutorado... Isso quando conseguiam alguma.

Tenho certeza de que quem não é da área, acharia que estou falando absurdos ao ler isso. Mas é a pura verdade. Em certas áreas, quanto mais formação você tem, pior. A academia tem a tendência de tornar as pessoas um pouco mais idiotas e arrogantes. Começamos a nos sentir bons demais para a sociedade. Afinal vivemos a maior parte do nosso tempo dentro da universidade, com os narizes enfiados nos nossos experimentos e lendo artigos escritos por pessoas que fizeram o mesmo que nós, só que por mais tempo.

A academia faz você perder a noção do que é a vida real. E naquele momento eu começava a me sentir bom demais para um emprego qualquer.

A verdade era que o trem corria a mais de cem por hora e eu tinha medo de me espatifar pulando dele.

Mas no fundo, eu sabia que ia terminar pulando daquela merda...

Eu tinha passado pela universidade conseguindo ter ainda algo que se pode chamar de vida social. Principalmente nos últimos anos, eu sentia que tinha vivido satisfatoriamente, quando estava com a cabeça fora da faculdade.

Comparando-se com algumas pessoas em que esbarrei no meu caminho, eu podia até ser tido como um boêmio.

Houveram realmente períodos que desperdicei mais tempo (e dinheiro) do que eu devia, entre cerveja, mulheres e atividades paralelas. Mas certamente, menos do que eu gostaria de ter desperdiçado.

Não que eu me considere um irresponsável. Sempre que a coisa apertava, eu largava tudo e me focava como um louco no trabalho.

Quando finalmente conseguia cumprir meus prazos, eu emergia de volta para a vida, como se tivesse saindo de um casulo, e todo o ciclo recomeçava.

Muita gente tem a ilusão de que quem faz pós-graduação é apenas um estudante.

Foram tantas as vezes que eu ouvi isso, que tenho certeza que se eu fosse uma pessoa violenta, já teria sido preso por socar algum desses desinformados.

Na pós-graduação se trabalha muito. E o reconhecimento é pouco.

Ganha-se pouco, e pouca gente faz idéia do que significa viver com a corda no pescoço, ter que aturar os egos acadêmicos hiper-inflados de colegas e professores. Todos querendo saber mais uns que os outros. Não é raro que se ouça sobre casos de depressão e de suicídio entre os alunos.

Esses casos sempre são tratados aos sussurros e muitos dos próprios alunos vêem isso como um sinal de fraqueza das pessoas envolvidas.

Como me disse certa vez uma professora;

“Se o mundo é um ninho de cobras, as piores são as que tem pós-graduação”

O pior de tudo são as expectativas. As próprias e as dos outros.

Todo mundo que resolve seguir carreira na academia vive cercado de cobranças. Em geral sonhos que os pais e agregados construíram ao redor daquela decisão.

Certos pais conseguem tornar tudo pior. Conheço pessoas vivem próximos ao pânico, temendo frustrar as expectativas dos pais em relação a sua própria vida profissional.

No fim, sonhos e expectativas não pagam as contas.

E as contas sempre vêm para lembrar que a vida fora da universidade continua correndo.

E que você tem que se virar entre os dois mundos.

Quando você vive nesse tipo de situação por muito tempo é bem comum que uma hora ou outra você queira chutar tudo pro alto procurar algo mais tranquilo para fazer.

Mas sempre parece tarde demais para se fazer algo do tipo.

Naquele momento, eu tinha a impressão que a última estação que eu podia usar para descer em segurança já tinha passado há algum tempo.

Quis poder distrair minha cabeça como meus amigos faziam...

entre risadas,rock clássico, cerveja e mulheres estranhas.

mas naquela noite, nada podia tirar minha cabeça daquele trem,

e daquela viagem de dez anos.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 06/05/2014
Reeditado em 06/05/2014
Código do texto: T4796951
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