Os Peritos

OS PERITOS

Éramos quatro. Levantamos cedo e surgiu logo o primeiro problema: quem faria o café? Ah! Café. . . deixa comigo. Sou perito em café! exclamou alguém. Mas e o fogo, quem iria acendê-lo? O fazedor de café não era fazedor de fogo. Problema resolvido: tinha um perito em acender fogo. Criado na roça. . .

Uma hora e meia depois, a cozinha toda enfumaçada, os pulmões estourados, os olhos vermelhos, os peitos doloridos de tanto tossir, provávamos um líquido esquisito – que apelidamos de urina do Pererê – enquanto adjetivávamos uma pobre e inocente senhora, progenitora do perito em café.

Após umas infrutíferas anzoladas e com os dedos gosmentos de minhoca, voltávamos à cozinha para planejar o almoço. Definido: arroz, macarrão, salada e frango. Cada um se encarregaria de um dos ingredientes. O fazedor de café – que não era fazedor de fogo – adiantou-se logo em se declarar perito em arroz. Entreolhamo-nos angustiados, o que bastou para que ele retirasse a expressão, concordando, humildemente, em ficar com a salada. O artífice do fogo, com toda sua eficiência e experiência de ex-roceiro, faria o arroz. Quanto ao macarrão, o que não era fazedor de fogo nem de café entendia do assunto. Aliás, tinha muito a ver com La Bela Itália, pois, afinal, seu avô conheceu um sujeito que fora vizinho de um italiano durante muitos anos. . . Perito em macarrão! E o frango? Bem, não foi preciso discutir. Sobrara só eu sem tarefa. . . E por que não dizer? Perito em frango, ora bolas! Ensopado, a passarinho, frito, assado e até mesmo ao molho pardo!

Começou, então, a discussão sobre como seria feito o dito cujo, já que cada um apreciava mais de um jeito. Percebendo que jamais chegaríamos a um acordo, dei uma de ditador: seria ensopado! Afinal quem ia fazer o bípede era eu (e com essa de “ bípede” levei uma sublime gozação). Tudo acertado, decidido e acatado, aparece um problema maior: pegar o frango! Surgiu a idéia de tiro, a qual rechacei veementemente, pois encheria a carne de chumbo e, pior ainda, perderíamos o sangue, delicioso tira-gosto. O jeito era mesmo correr atrás do bípede (a essa altura não se falava mais em frango) até que ele cansasse. Era assim que a gente os apanhava no meu tempo de moleque. Cansava, logo, logo! E teria morte clássica, tradicional, digna de sua linhagem galinácea: sangria da artéria “pescoçal”, com rompimento furo-contundente da traquéia. Aliás, diga-se de passagem, evidente e irrefutável “causa mortis”.

Quintal a fora, como quatro destemidos caçadores, fomos escolher a vítima. Outra dificuldade. Um estava pequeno, outro era da carne escura, um terceiro tinha a crista pequena demais (um dos companheiros se dizia maníaco pela cabeça de bípedes com crista avantajada) e assim por diante, até que encontramos um ideal: grande, pernas amarelonas, crista enorme, e com a grande virtude de ser do pescoço pelado, o que facilitava acentuadamente a execução!

Iniciamos a caçada. Um reboliço tomou conta do quintal. Folhas de bananeiras arrancadas, espinhos de laranjeiras quebrados, gritos, tombos, xingatórios, maldições, respirações ofegantes, culpabilidades mútuas e, para completar, o súbito e inesperado desaparacimento do cantante entre moitas de abobreiras.

Exaustos, mal conseguindo soprar assustadoras ameaças à raça penosa, sentamos sob uma mangueira pra descansar. Gozado! exclamei, depois de alguns ofegos: “no meu tempo de moleque os frangos cansavam com muito mais facilidade!”. . .Foi sugerida, após prolongado descanso, a escolha de outro bípede. Proposta indeferida. Seria um absurdo capitularmos diante de um reles ...”filho da galinha, já crescido mas antes de ser galo”, segundo Aurélio. Além do mais estava cedo para o almoço. Podíamos esperar seu aparecimento. Enquanto isso a gente molhava a garganta com uma cervejinha, que, afinal de contas, bem merecíamos!

Dito e feito. Decorrida uma meia-dúzia de quatorze ou quinze cervejas, lá estava o cantante, descansado e com aquele ar de zombaria. Desta vez ele não escapava. Armamos uma estratégia de ataque infalível: faríamos rodízio para apanhá-lo. Cada um corria um pouco, começando por mim (um pilantra sugerira a ordem alfabética). Iniciamos a investida imediatamente. E o plano funcionou. Oito rodadas depois o ex-roceiro, cambaleante e impossibilitado de soltar um grito de vitória, levantava na destra o troféu de penas, à moda dos vencedores. . .

O resto era comigo. Amolei a faca no cimento do fogão, trancei as asas da vítima, pisei-lhe as pernas compridas e amarelas e me preparei para o honroso sacrifício, já com um prato molhado sob o pescoço do futuro “de cujus”. Um verdadeiro cerimonial. Um suspense aterrador, onde se ouvia apenas a respiração ainda ofegante dos combatentes.

Feita a incisão fatal, o sangue esguichou no prato, e o sacrificado, roncando um ronco de moribundo, amoleceu pouco a pouco. Soltei-lhe o pescoço e me levantei para, sob a admiração da galera, comemorar a façanha. Foi aí que se deu a tragédia. . . O pretenso “de cujus” começou a dar pinotes espectrais, espalhando sangue e fezes pela cozinha, enquanto cada um dos espectadores procurava se proteger como podia, subindo nos bancos ou no fogão. . .

Enfim o agonizante se conscientizou de sua condição e entregou os pontos, dando-me oportunidade de iniciar a operação-depenamento. Limpo e sapecado, faltava abrir e esquartejar. E agora , José, em quantos pedaços? Uma vez ouvi minha mãe dizer que o frango, bem partido, devia dar vinte e dois. . .

Quatro horas da tarde. Sentados nos bancos de uma cozinha respingada de sangue e fezes de ave, nós, os peritos, devorávamos uma estranha gororoba, soprando como dragões e enxugando o suor do bigode, em consequência da maldita pimenta malagueta. . .

Alírio Silva
Enviado por Alírio Silva em 07/05/2014
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