CHICÂO

C H I C Ã O E O ELEVADOR

Alírio Silva

O nome de batismo – e de registro – devia ser Francisco Pereira de alguma coisa, ou de alguma coisa Pereira, pois era filho do velho Pereira, que já conheci velho e quase cego, sempre apoiado naquela bengalinha envernizada pelo tempo e com o desenho de um cachorro no cabo de metal, com a língua pra fora. Passava a maior parte do dia na “venda” do meu pai, sentado num banco de madeira também envernizado pelo uso, admirando-se do seu repertório em arranjar-me um nome tão “trapaiado”. Por que não Joaquim, Pedro, Crisóstomo, Antonio ou Sebastião, como o pai?

Mas voltemos ao Francisco, que, como todo Francisco que se preza, virou Chico, que, como muitos Chicos, acabou virando Chicão, a maioria fazendo jus fisicamente ao aumentativo, como no caso deste Francisco. Chicão, realmente, era um “bitelo” de homem...

Além de outras excelentes qualidades, Chicão detinha em seu currículo a de jogador de futebol e “dos bão”, como se vangloriava o “beque” do “Bom Jardim Futebol e Regatas”. Aliás, este nome do time deu pó pra cheirar. Uns não queriam de jeito nenhum esta história de “regatas”, pois não tinham a menor idéia do que significava. Mas o Chicão, com o seu indiscutível – indiscutível no bom sentido, no sentido de não aceitar discussão – poder de dissuasão, encerrou o assunto com irrefutável argumentação: “. . .se o Vasco tem “regatas” é porque o trem é bão, já viu?!”.

E ficou “Bom Jardim Futebol e Regatas”. . .

Nem mesmo uma lagoa havia pr’aquelas bandas, mas e daí? Brigar com o Chicão, aquele “portão de cimintéro”, “monte d’inguinorânça”, “istrupiço”, “burro amarrado pru rabo”? Nem pensar!

Mas esse era, na realidade, o nome oficial do time, porque, na intimidade, era mesmo era “Time da UDN”. . . É que ali na Vila havia outro time, o “Flamengo Futebol e Regatas”, que, logicamente, era o time do PSD. Coisa comum, nas Vilas e nas políticas de antigamente: loja da UDN e loja do PSD, farmácia da UDN e farmácia do PSD, buteco da UDN e buteco do PSD. . . Só a Igreja era uma só. Igreja católica, claro, pois isso de “Protestante” era coisa do capeta, e só existia em cidade grande. Mesmo assim, até o padre, às vezes, era tachado, respeitosamente ( e de longe), de “do contra”.

Chicão podia ser abrutalhado, ignorante, teimoso, mas uma virtude não lhe faltava: sinceridade. Falava pra quem quisesse ouvir que não nascera para trabalhar. Que “sirviço” era coisa do diabo: Deus, na sua infinita bondade, jamais iria inventar “um trem desse pr’os fio dele, já viu?!” E assim ia levando uma vidinha tranqüila. Costumava dizer, além de outras “máximas” interessantes, que jamais encontrara uma “tarefa” pequena ou um pedaço de carne grande! Era um folgadão.

Dizem que quando o Fernando Collor foi candidato a Presidente da República o Chicão torceu - e até rezou, fez promessa e tudo – para que ele não fosse eleito, pois não gostava nada daquela história do “tal de Cola” querer dar terra pra todo mundo poder trabalhar. . .

Era “vacinado” contra o trabalho, o Francisco Pereira de Tal, ou de Tal Pereira!

Como todo mundo, Chicão também tinha um sonho: conhecer Belo Horizonte. E um dia surgiu a oportunidade. Um cunhado seu, aposentado, que tinha sido motorista da Cometa, e conhecia este Brasil de ponta a ponta, ia à Capital levar um fazendeiro para se submeter a uma cirurgia e, como ele teria que ficar por lá uns trinta dias recuperando-se da operação, o cunhado voltaria sozinho no veículo. Ah! essa não podia perder!

E lá se foram. Para o Francisco, foi novidade atrás de novidade. Tanta coisa diferente: comida de restaurante, com peso e tudo – ele jamais pensou que comesse mais de um quilo! – ficha pra tomar café, fila pra usar privada, homem requebrando que nem mulher - “é o fim do mundo, já viu!?” – carro “tirano fininho”, ajuntamento de gente pra comprar um remédio que cura até “doença braba”. . .

Foi um sufoco. Correria, esbarrões, preocupação com o precioso dinheirinho – metade no bolso e metade dentro da meia – sinal vermelho, amarelo e verde, buzinação sem motivo, cantiga de pneu no asfalto, assustando o coitado do Chico. . .

De vez em quando o cunhado chamava pra tomar um cafezinho num bar, fazer “boca de pito”, e aí o Chico, mais à vontade, mas sempre com a mão atafulhada no bolso dos “cobre”, fungando e suado como nunca estivera, arriscava:

- Batista do Céu!...isso aqui num é lugá de gente séria morá não, já viu?

Mas o bom mesmo foi no “tal” de elevador. Daqueles que costumam chamar de supersônico. Que, quando arrancam pra cima, as pernas parece que enterram no tronco, e, quando arrancam pra baixo, a cabeça parece ficar flutuando...

A porta abriu e eles entraram. Estava vazio e o Chico ficou ali no meio, todo, todo, tranquilão. . .

- Décimo oitavo. . . informou Batista ao ascensorista.

E o bicho arrancou. Chicão soltou um gemido feio, amarelou e procurou encostar na parede. . . Batista, vermelho que nem um peru e segurando a custo a risada, perguntou, com aquela cara de ingênuo:

- Tá sintino alguma coisa, Chicão?

E o brutamonte, o becão do Bom Jardim Futebol e Regatas, arquejante e quase vomitando, sussurrou baixinho:

- Gôsto de chulé na boca!. . .

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Alírio Silva
Enviado por Alírio Silva em 07/05/2014
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