LUZ , CÂMERA , AÇÃO !

CLICK - PARTE II

A ARTE É A MENTIRA QUE NOS PERMITE CONHECER A VERDADE .

- PABLO PICASSO

A senhora , deve ter sessenta anos , aparece com seu telefone de bolso . Sera que não posso dar um jeito nele? O problema , segundo ela, é que o telefone não liga . A senhora me mostra apertando o botão de ligar .

Você Vê , ele não liga .

Não seria a bateria ?

Ela garante que não . Tira o carregador da bolsa e pede que eu bote em alguma tomada . Digo que não precisa , garanto que acredito no seu julgamento , mas ela insiste.

Não liga , não é ?

Certo , ele não liga .

Bato com o aparelho na palma da mão que nem a gente faz com o controle da TV quando a pilha esta acabando. O que pode ser ? O telefone é novo . Tem apenas dois anos , e trabalhava direitinho até semana passada , quando começou a não querer ligar mais . Peço para a senhora deixá-lo comigo . Até hoje de tarde.

O senhor não saberia que horas são ?

Olho para qualquer relógio na bancada . Todos dizem que são nove e meia . Os da parede não deixam mentir. A pobre velha deixa minha oficina de relógios , minha capsula do tempo , com a certeza de que vou dar um jeito no seu celular . Más até aquele momento nem tinha me dado conta de que não tenho a miníma ideia de como arrumar aquilo . E agora ? Escrevo um aviso numa folha .

VOLTO LOGO

Colo o aviso com durex na porta de vidro e sigo na direção de uma assistência técnica a dua quadras . Levo o aparelho e o carregador da senhora comigo . Talvez lá eles saibam o que fazer . Estamos vivendo o outono mais frio da década . Todo mundo usando roupa grossa , andando de mãos nos bolsos , tomando café e creme de cebola , caldo de vários sabores . O pessoal aproveita para fantasiar . Todos na Europa dos seus sonhos . Saindo da loja de trico a mãe ajeita a touca de lã na cabeça do filho . O menininho tem seis anos , luta contra os cuidados da mãe .

Vai ficar com dor de ouvido a noite ., reclama ela , forçando o gorro na cabeça do garoto , mas o pequeno tira e joga , revoltado , a touca no chão , eu bato a foto . Estou parado no outro lado da calçada , atravancando o transito de pedestres . A mãe puxa o menino pela mão e ambos deixam o objeto ali . A mãe incrédula não se da ao trabalho de pegar , mas outra pessoa que observava tudo apanha a peça e corre atrás dos dois .É um tipo esfarrapado envolto em trapos . Tem a barba por fazer , os cabelos secos de aparência empoeirada . Quando toca o braço da mãe para chamar sua atenção ela se assusta e logo vai botando a mão na bolsa , procura por moedas , mas o tipo esfarrapado entrega o gorro ao pequeno e acaricia sua cabeça . Ele recusa as moedas e segue seu caminho oposto . O homem em trapos me entreteve . O pequeno momento magico que jamais se repetira , e não pude capturar . Preciso de outro filme , de outras algemas .

O jovem da assistência esta entretido escrevendo no seu celular . Ele tecla , espera alguns segundo e ri . Permanece assim enquanto eu aguardo na sua frente com o aparelho da senhora em mãos . Limpo a garganta com um pigarro . Depois marco o tempo com o pé . Dou uma volta pela loja , entro e saio dela para fazer o sistema , o sinal sonoro que avisa quando algum cliente entra soar . Faço isso duas vezes . Entro e saio entro e saio . Talvez ele seja surdo . Por isso escreve e não conversa . Meio que jogo o telefone da senhora no seu balcão de vidro , só assim o jovem nota que estou ali . Ele responde mais uma mensagem para só depois se voltar para mim . O que desejo ?

Explico tudo para ele . Mostro que quando aperto o botão de ligar , o aparelho não liga .

Mas não seria a bateria

Veja , tenho o carregador .

Peço para que ligue na tomada .

O técnico simplesmente apanha tudo da minha mão e bota numa caixinha . Qual seu nome ? Dai marca num papelzinho que cola sobre a caixa . Pede para que eu volte amanha . Mas preciso dele pronto hoje . Não da tempo , estou ocupado , responde escrevendo no celular.

Mas ele não é meu .

Que se dane , escuto o técnico dizendo .

Tenho vontade de enfiar seu rosto no balcão de vidro .

Peço que devolva o celular da senhora .

Qual poderia ser o problema ?

Só posso responder a essa pergunta se deixar ele aqui .

Sinto que o jovem não esta nem ai para mim . Pouco se lixa com meu caso .

Então eu poderia comprar outro igual .

Para minha sorte ele tem um igual . O ultimo .

Não fabricam mais deste . Esta ultrapassado .

Fico com esse .

Vai querer o quebrado ?

Não . Não saberia o que fazer com ele . É lixo .

O assistente da de ombros .

No caminho de volta resolvo passar na padaria de alimentos naturais . A moça do balcão , aquela de olhos vermelhos , gesticula com os dedos quando me ve passar .

Então , aproveitou bastante a festa ?

Ela fala da festa dos anos oitenta . Digo que não . Nem mesmo musicas da década tocaram . E quem quer ouvir coisas velhas ?

Vi você com aquela garota de cabelos azuis , diz a atendente com cara de safada . Fiquei um tempão com ela , conversando com ela , lembra a dos olhos vermelhos .

Uma maluca , respondo , sem duvida uma aproveitadora . Tive de pagar bebidas e levá-la para casa .

Me pareceu bem jeitosa .

Uma pessoa interessante , sem duvida , se quer saber .

Semana que vem , festa dos anos sessenta , quem sabe não encontra a dos cabelos azuis lá .

Eu não vou .

Levo minha câmera debaixo da camisa . Ela faz um volume enorme , como se fosse uma corcunda na meu peito . A moça do balcão repara nisso por alguns instantes .

Então , o que vai ser hoje ?

Peço suco de laranja e sanduíche de peito de peru .

….............

Cade a agenda ? Quer saber a senhora , quando lhe entrego seu novo telefone de bolso . Não digo a ela que é novo .

Preciso dos números que estavam na agenda . São importantes , são contatos importantes . Onde você os pos ?

Explico que ocorreu um problema e os dados se perderam . Mas claro , é mentira . A senhora passa as mãos pelos cabelos grisalhos , não se conforma com o que fiz . Nervosa quer saber quanto me deve pelo trabalho .

Nada , não me deve nada , falo , com a nota fiscal do novo aparelho no bolso da jaqueta jeans . Mas ela não precisa de esmolas , insiste em saber quanto me deve .Dou qualquer valos .

Vinte , o conserto fica em vinte ,já que insiste .

Um absurdo ! Pragueja a senhora . Em qualquer outro lugar me cobrariam dez .

É uma discussão tão ridícula que se segue que passo a dar respostas automáticas . Pessoas passam em frente a oficina e ouvem tudo que a senhora me diz; o que faço e olhar para elas com um sorriso estampado no rosto .

Meu dia esta no fim . São seis horas . Daqui a pouco estarei em casa . Esse foi um dia de pouco movimento . Todos os dias são de pouco movimento . Relógios estão se tornando antiquados , e os muitos que ainda usam optam por descartáveis . Do tipo que quando a bateria acaba não há mais o que ser feito . Espero o movimento diminuir bastante na rua para ir embora . Todos estão saindo , deixando seus empregos , rumando para o ponto mais próximo , para o estacionamento , todos na rua ao mesmo tempo , congestionamento no asfalto e na calçada . Na bancada de vidro , com a porta fechada , tento remover a foto do relógio de prata que consegui com o senhor semana passada . Acabei descobrindo que a coisa é de lata .Com todo cuidado , usando uma Gilete , forço a foto de sua filha flautista para fora da tampa com o V entalhado nela

Batem na porta . Quatro vezes .

Estamos fechados !

Preciso falar com alguém que acho que trabalha aqui , diz a voz do lado de fora da minha porta de vidro . Com a cortina fechada não consigo ver quem é .

E com quem seria ?

Digo que trabalho sozinho . A voz pede para que eu abra a porta . Ela não se lembra do nome da pessoa

Vamos lá , pelo menos me deixe usar seu banheiro .

Não deixo nem fregueses usarem o banheiro .

Mas é caso de urgência .

Quem é que esta ai ?

Ela me diz seu nome . Seu nome é um gênero de borboletas .

Tem uma pessoa ai dentro que mentiu para mim no final de semana , conta ela . Essa pessoa se passou por fotografo , me disse que era fotografo , que estava trabalhando . Perguntei ao sujeito que me contratou e ele disse que não chamou mais ninguém .

Do outro lado da porta de vidro respondo que nunca disse nada sobre ser fotografo .

É só um hobby idiota meu .

Mas você me pediu para te dar metade das fotos que tirei , e eu concordei só para não te deixar sem nada .

Não pedi nada , digo com o rosto colado a porta . Foi você quem entendeu errado . Estava bêbada , me fez pagar um monte de licor de chocolate e ainda por cima tive de levá-la para casa .

Ela , do outro lado , quer saber onde esta sua moto . Mas que moto ? A sua , a que ela usou para ir até a festa dos anos oitenta . Reclama que desde sábado não a vê . Abro a porta e a encontro tentando espiar pelo vidro através da cortina . Esta arcada com um olho tapado . Seus cabelos estão vermelhos como seus tenis all star surrados . Tem uma pasta nas mãos que me entrega .

Toma , suas fotos . Cumpri minha parte do trato mesmo você sendo um mentiroso .

Seu perfume é bom , doce mas não enjoativo . Seus lábios estão tão vermelhos quanto seus fios . Parece uma palhaça . Tudo contrasta com a pele branca , quase paliada do seu rosto .

Então , me deixa usar seu banheiro ?

A verdade é que não tenho banheiro na oficina . Sempre uso o da loja de suplementos ao lado . Mas não digo isso a Vanessa .

Esta quebrado , é o que falo . Porque não vai até o outro lado da rua , na farmácia .

Mas o banheiro foi só uma desculpa .

Disse isso só para que me deixasse entrar . Afinal de contas , o que é isso ai dentro .

Minha capsula do tempo .

Conserto relógios , respondo . E pelo que vejo não tem trabalho para mim , estão ….

Já esta fechando ?

Já estou fechado .

Legal , to sem grana para o táxi , me leva pra casa ?

Bom …

Não seja chato . Sabe onde moro , nem é tão longe assim .

Falo que não daria . Que antes tenho de passar em casa , que estou atrasado .

Legal , assim descubro onde mora . Mas não se preocupe , não sou nenhuma assassina ou ladra . Não sou perigosa .

Então é aqui que mora o perigo ?

Não entendo sua piada . Estamos parados em frente a porta do meu apartamento minusculo . Pedi para esperar no carro , mas ela parece não ouvir .Meu piso faz barulho , ela lembra . Dai começa a dançar , passos de dança louca , tudo para fazer os tacos de madeira do apartamento rangerem .

Queria ter piso de madeira na minha casa . Mas já pensou numa infestação de cupins ?

Não , nunca pensei .

Com uma praga dessas , durante a noite , quando menos você esperar , vai sentir sua cama caindo , e quando ver vai estar no andar de baixo , com sua cama esmagando a do outro inquilino .

Impossível . Claramente assiste muito desenho animado .

Pode acontecer , ela me diz .

Mentira .

Mentira é só uma verdade que ainda não aconteceu .

Vanessa me pega com essa . Sentada no sofá pede para que eu me apresse .

Preciso chegar em casa logo . Tenho coisas para fazer .

Tenho que enrolar . Disse que precisava vir em casa antes , mas é tudo mentira . Foi só uma forma de dizer : não vou te dar carona alguma . Vanessa com seu cabelo vermelho quer saber se tenho vinho . Tenho uma garrafa aberta na geladeira , ela se serve . Teria eu drogas em casa ? Claro que não , o que pensa que sou ? Um viciado .

Nunca pensaria uma coisa dessas .

Sou muito careta , diz Vanessa , enchendo seu segundo copo de vinho .

Vou para o quarto e me tranco nele .

Ganhar tempo .

Ouço seus passos no lado de fora . Ouço sua voz cantarolar Plush do Stone Temple Pilots . A pessoa mais estranha que já conheci . Tento sem sucesso arrancar a foto do relógio de bolso muito importante . A foto da garota flautista . Com a unha ergo uma ponta e vou puxando bem devagarinho .

Hey , precisamos sair , tenho de chegar em casa logo !

Não dou bola . Os nós dos seus dedos batem na porta três vezes. Impaciente passa a usar o pé . Se arrebentar minha porta vai ter que pagar , alerto Vanessa .

E se eu me atrasar para meu compromisso ?

A campainha toca , eu atendo , diz ela . Não , não atenda ! Mas a maluca de cabelos vermelhos não escuta . Tento alcançá-la mas dou de cara com meu vizinho entrando . O vizinho do boliche .

Cara , não sabia que tinha visita .

Ele não te falou de mim ? Pergunta Vanessa ao meu vizinho , com se tivéssemos alguma coisa .

É , cara , não me falou dela .

E porque deveria ?

Ele acha que é meu amigo .

Eu acho que ele é meu único amigo

Vanessa se aproxima rebolando como um cachorro excitado . Comédia . Se agarra a mim como naquelas cenas de filmes em preto e branco e me da um beijo no rosto .

Olha só , tem um coração batendo aqui , diz ela , com a mão no meu peito . Meu coração parece uma britadeira .

Aposto que joga boliche , toda garota de classe joga boliche , diz meu vizinho .

09/05/2014

15H55M

Cleber Inacio
Enviado por Cleber Inacio em 09/05/2014
Código do texto: T4800279
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